- Então, não vens? A voz inconfundível do meu amigo provocou-me um baque. Olho para o relógio e vejo que ainda faltavam quarenta e cinco minutos para o evento. Recordei-lhe o facto, mas justificou-se com a missa, tinha acabado mais cedo! Atrapalhado, larguei praticamente o que estava a fazer e corri o mais depressa possível para o local. Senti um forte embaraço, porque estavam todos à minha espera para a cerimónia. Tentei desculpar-me, não em demasia, para não desrespeitar as pessoas presentes, auto interrogando-me, como foi possível acontecer uma coisa destas, a mim, um obsessivo no cumprimento dos horários? Aconteceu. Pedi desculpa aos presentes, família Moura e autoridades. De seguida, após uma pequena celebração religiosa, foi descerrada uma lápide comemorativa dos cinquenta anos da empresa FAVIR. Recordo muito bem a sua fundação. Atualmente constitui uma força e exemplo de atividade empresarial que muito honra os seus administradores e o concelho. No contexto de depressão económica em que vivemos, ver uma empresa a crescer, segura e a exportar constitui um sinal de esperança que merece destaque.
Voltando atrás, recordo a sua criação. Passava diariamente junto da Fornecedora dos Sr. Moura e do Sr. Costa quando ia para a escola. Com o tempo, e não foi preciso muito, os miúdos da época acabaram por aprender a respeitar as individualidades que marcavam o quotidiano de então, numa altura em que o "respeitinho era muito bonito".
O apelido Moura, para a geração menos nova, de que já faço parte, é símbolo de prestígio, sinónimo de trabalho e marca de sucesso, que, felizmente, ainda paira entre nós, graças aos continuadores, filhos e netos.
Hoje, no decurso das festividades, fui obrigado a conversar comigo próprio. Lembrei-me do senhor Moura, não é que tenha privado intimamente com o senhor, na altura era um mero catraio, mas conheci-o e retenho alguns episódios. Vou relatar apenas três. O primeiro tem a ver com o atrevimento da canalhada de então que, quando ia para a escola, entrava na Fornecedora para pedir amendoins. Eu também ia. Uma das vezes foi o próprio que me questionou o que eu queria, não estava à espera. Comecei a tremer e, de cabeça baixa, disse que era por causa dos amendoins. Hum! E onde é que os levas? Meti as mãos nos bolsos dos calções, como quem diz, aqui. Aí não levas grande coisa. Dá cá o boné. Atrapalhado, sem saber para que é quereria o boné, entreguei-lho. Passado pouco tempo apareceu com ele cheio de amendoins, cujo fabuloso odor precedeu a entrega. Fiquei com os olhos arregalados e agradeci como pude e sabia tão generoso gesto.
Num segundo episódio testemunhei a sua vertente dura. Ao descer a ladeira, num carro de rodados, eu e um outro colega, aproveitando a excelente inclinação, passámos à velocidade da luz em frente da porta. Provavelmente, o barulho dos rodados deverá ter-lhe chamado a atenção, e, quando viu que íamos entrar na estrada nacional, ralhou-nos com tal determinação que nunca mais repetimos tamanha façanha. Fiquei muito envergonhado e, também, com medo de nunca mais ter acesso a amendoins tão saborosos.
No terceiro episódio foi eu que me zanguei com o Sr. Moura, mas nunca soube. Na altura, depois das aulas queríamos jogar à bola, mas o professor não permitia que continuássemos a utilizar o recreio da escola. Mas não havia problema, porque precisamente ao lado, do outro lado da estrada, havia um espaço ótimo para esse efeito. Um dia a Fornecedora expandiu a sua superfície acabando por o ocupar. Um aborrecimento. E agora? Onde encontrar um espaço semelhante que permitisse aos miúdos continuar a jogar como se fosse na escola? Não havia. Fiquei zangado. Passado algum tempo a construção estava concluída. Colocaram um painel de azulejos no topo. Olhei e vi que as palavras estavam erradas. Onde é que já se viu uma palavra com um "m" seguido de um "n", e uma outra com um "t" no fim? Estão erradas. Copiei-as para a lousa e quis provar em casa os erros. Foi então que me disseram que não era erro nenhum, eram palavras em latim. Latim? Como da missa, que ninguém entende? Sim. É uma frase em latim. E o que é significa? Significa, "O trabalho vence tudo". No dia seguinte voltei a olhar para a minha primeira locução latina, "Labor Omnia Vincit". Achei-a tão bela, tão simples e tão rica que me apaixonei por ela, adotei-a, instintivamente, como o lema da minha vida, até hoje, e não me arrependo. Afinal, a minha zanga, por ter tirado o segundo recreio, foi compensada como uma das mais elegantes expressões que está na base do sucesso das pessoas e das sociedades. Passo amiúde por aquelas bandas, muitas vezes só para voltar a ler "Labor Omnia Vincit"...
Três lições de um homem, generosidade, autoridade e sapiência. Eu agradeço as três, passados cinquenta anos.
2 comentários:
As 3 palavrinhas continuam a existir, a diferença... é que separadas...
Belo post. Creio que cada vez mais vamos desistindo de pedir a acumulação dessas três qualidades, já é uma sorte se encontrarmos ao menos uma.
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