Apercebeu-se facilmente, mesmo quando era muito nova, que o seu corpo modelar, ornamentado por uma beleza cristalina à qual se somava um riso fácil e uma simpatia cativante, atraía candidatos desejosos de saborear o mel. A posição social rapidamente impediu o aproximar de pés rapados, acabando, mais tarde, por se enlaçar matrimonialmente com alguém da sua posição e estatuto económico. Tudo decorria com os altos e baixos da existência, até que o destino, o Cronos, ou ambos, obrigaram-na a separar-se, culpa de quem?, de ambos ou de ninguém, mas mais vale uma estocada mortal do que andar a apunhalar-se no dia-a-dia. Foi o que fez. Passou mal este período, mas, dotada de uma fé inabalável, soube que poderia ultrapassá-lo e conquistar o seu direito à felicidade.
Católica fervorosa, nunca deu nas vistas, entrava no templo, cumpria as suas obrigações e aplacava a sua ansiedade solicitando a ajuda dos que vivem no além. Fé não se discute, sente-se, amor não se compra, conquista-se. Ao contrário de muitos e muitas que entram com a alma suja, convencidos de que a podem lavar ingerindo o “corpo de Cristo”, ela não, entrava com a alma límpida, a tremer de sofrimento, para sair com ela cristalina e tranquila. Os outros, encardidos pelas práticas diárias, conseguiam conspurcar-se ainda em templo, mas, convencidos de que podem purificar-se durante o ritual da comunhão, resolvem o problema consumindo hóstias a torto e a direito. Não era propriamente uma consumidora compulsiva ou exibicionista daquele momento, considerado como o mais alto da celebração. Quando precisava de tranquilizar a alma, mais do que a limpar, entregava-se com paixão e sentimento, o que sempre fazia quando amava, e este momento era uma celebração de amor.
O tempo cura muitos males e adocica as cicatrizes, as suas começaram a esvanecer-se, permitindo que a sua beleza e simpatia ressurgissem com algum fulgor, apenas temperadas pela força da idade. Refez a vida, à sua maneira, e, desejosa de ternura, procurou o amor, a melhor forma de andar por este mundo.
Um dia, no momento da eucaristia, enfileirou-se discretamente a fim de receber simbolicamente o seu Deus. Um Deus feito Homem, esculpido num velho tronco de madeira, agarrado à cana real, desnudado, apenas uma faixa de pano escondia as partes pudendas, assistia imóvel à cena junto do altar. Chegou o momento de receber a hóstia, mas o padre, ostensivamente, não lhe a ofertou, a senhora hesitou, olhou-o interrogativamente, tentando perceber o que é que se estaria a passar, até que a voz do “representante” do divino lhe anunciou que, como estava em pecado, não podia receber o corpo de Cristo. Sentiu um estranho formigueiro a percorrer-lhe o corpo e uma vontade de desfalecer, senão mesmo morrer. Valeu-lhe o olhar do Cristo de madeira, que, impossibilitado de repor a ordem, e a coerência cristã, naquele ato, se limitou a tranquilizá-la. Se não fosse de madeira, decerto que cascaria com a cana no coiro daquele safardana, e expulsá-lo-ia do templo, porque não se lembrava de algum dia lhe ter passado qualquer procuração nesse sentido. Envergonhada, e catolicamente humilhada, regressou com dignidade ao seu lugar, sem evitar olhares malévolos e pensamentos pecaminosos de muitos que ainda não tinham sequer deglutido a farinha de trigo.
O tempo mais uma vez ajudou a resolver os problemas. Uma pobre mulher, que muito devia à senhora, tinha por hábito ofertar-lhe o primeiro pão da sua cozedura, um ritual de agradecimento e de amor a quem sabe fazer o bem. Abriu religiosamente o pão, retirou um pouco do miolo e, de olhos fechados, introduziu-o na boca. Ao dissolver-se, o sabor adocicado e quente teve um efeito calmante acompanhado da visualização do Cristo de madeira agarrado à cana. O olhar deste tornava-se brilhante, alegre, misteriosamente vivo, como se estivesse presente. No domingo seguinte voltou ao templo e, chegado o momento da eucaristia, enfileirou-se. Ante a estupefação do clérigo, abriu as mãos, olhando para o Cristo, e introduziu na boca um bocadinho de pão da véspera, voltando a sentir uma paixão e uma tranquilidade indescritível. Deu a volta, ignorando o padre, que, espantado com a atitude, deixou cair o cálice no chão, provocando uma estremeção generalizada nos presentes. O padre olhou para trás, e, ao ver a cara de Cristo, cara de muito poucos amigos, deverá ter compreendido que o significado de pecado do Redentor é muito diferente do seu.
2 comentários:
Mas que fascinante narrativa, caro Professor, concluída da forma mais cativante!Quem percorrer os evangelhos, encontra vários episódios que nos permitem concluir que a reacção do Cristo histórico seria exactamente aquela que refere!
Sem dúvida, concordo com o Tavares Moreira, quando o julgamento dos homens se quer substituir ao julgamento de Deus o resultado pode muito bem ser o que conta esta história. Muito bonita.
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