Não deveria ter mais de trinta de anos, solto, desportivo, dentes brancos e alinhados, spraiando uma simpatia original, pediu licença para se sentar. Sorri, já não estou habituado a certas cortesias, mas foi mais do que suficiente - após brevíssimas palavras de circunstância, e depois de saber o que fazia-, para me atrever a questioná-lo sobre uma tatuagem complexa que deixava entrever no braço direito. Aceitou com agrado o desafio e prontificou-se para que a visse com algum detalhe. - Uma ampulheta! Porquê? Perguntei-lhe, ao mesmo tempo que me desfazia em pensamentos ao redor do tempo, algo que não compreendo, que sempre me atormentou e com o qual tenho relações difíceis, complexas e insanáveis. Nunca nos entendemos, e presumo que jamais nos entenderemos, nem mesmo quando deixar de existir, porque sendo "o tempo a substância de que sou feito", ele encarregar-se-á de se fragmentar, dividir, transformar-se e divertir-se à sua maneira. O tempo continuará a existir e eu passarei a gozar o prazer da eternidade inconsciente, em que as vinte e quatro horas de um dia não são mais do que o seu equivalente. Felizmente interrompeu as minhas lucubrações, dizendo que, para ele, a ampulheta representava a passagem desta vida para um outro tempo, desconhecido. O jovem acreditava noutra existência. - Aí sim? Disse numa entoação ligeiramente irónica, porque detetei uma certa hesitação na voz, mas contive-me a tempo, não só porque não estava com muita vontade de falar ou debater sobre o assunto, mas também por uma questão de respeito. Se ele quer acreditar, quem sou eu para negar e provocar-lhe algum desconforto existencial, pensei. Pus-me a analisar com mais detalhe o desenho inacabado. Na parte superior via-se perfeitamente uma caveira, um livro, uma pena, um tinteiro e uma garrafa meio mergulhados numa substância algo plasmática que, gelatinosamente, ia desembocando na parte inferior, materializando-se em tranças de raízes de uma hipotética árvore da vida. Na parte de baixo, destacavam-se três figuras humanas, uma a saltar, após transpor o istmo da vida, em direção a outra, que, de braços abertos, a chamava, oferecendo-lhe ajuda e confiança, enquanto a seu lado uma terceira saltitava alegremente como se tivesse, finalmente, encontrado a terra da felicidade ou o tempo da alegria. Uma curiosa tríade. Solicitei ao jovem que me desse a sua interpretação, mas titubeou, e eu não quis incomodá-lo, pensando que razões mais de natureza estética do que filosófica deverão ter presidido à escolha do desenho. Mas quando comecei a falar sobre as imagens do braço superior da ampulheta, respondeu-me, imediatamente, que era o que o homem fazia - Ai sim! - Claro, o homem pensa, escreve, lê e bebe. Pensei: - Muito bem. É isso mesmo, pensamos, lemos, escrevemos e bebemos. O ter colocado a bebida a par das restantes, constitui, apenas, uma questão de consideração por um "alimento do espiríto", dando uma dimensão fisíca à existência. Foi a minha interpretação, que, às tantas, não deverá ser coincidente com o proprietário do medidor do tempo.
O desenho, inacabado, irá enriquecer-se de chamas azuis; o fogo a alimentar-se dos apoios do vidro, e, por fim, ondas a simular o mar para que a ampulheta possa navegar em mares desconhecidos que nunca estiveram à nossa espera. Mais uma vez caí nas minhas próprias interpretações - como se fosse eu o tatuado -, muito diferentes das do jovem, que, aliás, nem parecia tê-las.
Que aspeto terá o desenho com o passar do tempo? Uma ampulheta enrugada, amarelecida, triste por não ter sido capaz de medir o mais enigmático dos fenómenos, que todos "sabem" o que é, mas que ninguém consegue explicar; o tempo, a "substância de que somos feitos"...
1 comentário:
Um Salvador, Catalão, este Dali, ficou para a memória futura do mundo, conhecido pela sua excentricidade surrealista, reflectida no seu tipo de vida e na sua obra.
Uma delas, a mais conhecida e provávelmente a mais representativa desse surrealismo, intitula-se "A Persistência da Memória", foi concebida em 1931 e mede somente 24x33cm. este quadro reflecte uma preocupação humana com o tempo e a memória e... dizem os "expert" da matéria que a cabeça adormecida, representa o próprio autor.
Será que cada um de nós, sente a necessidade mais ou menos intensa de perpetuar "um" tempo... ou... "o" tempo na memória?!
;)
Enviar um comentário