Após ter entrado, a conversa descambou imediatamente, como é habitual, para a política e para os acontecimentos que andam a marcar o quotidiano, crise, mais crise e um conjunto de figurões que passam pela vida impunemente, como se tivessem feito um qualquer pacto com o diabo ou, então, conseguiram uma "proteção" especial capaz de os tornar invulneráveis à ação da justiça.
- Curioso, nunca tinha reparado que tinha uma cicatriz no pescoço, mesmo em cima das carótidas.
Olhou-me, com o seu tradicional sorriso de quem sabe estar bem com a vida e disse-me:
- Quer que lhe conte como a arranjei?
- Claro que quero.
- Quando rebentou a guerra em Angola eu era paraquedista, como o senhor doutor sabe, fomos os primeiros a intervir. Foi muito complicado, os gajos já tinham armas automáticas e atiravam-se a nós como loucos. Nunca vi tanto doido; disparávamos e eles continuavam a correr, até vi um a segurar os intestinos com as mãos, só paravam se lhes atirássemos à cabeça. Caíam que nem uns tordos. Estavam convencidos de que não morriam e se morressem regressavam à vida noutro sítio. Davam-lhes umas mistelas para ficarem imunes às balas.
Depois de uma breve pausa, como se fosse obrigado a reviver aqueles momentos de uma forma quase religiosa, prosseguiu a sua narrativa.
- A primeira vez que fui ferido foi com uma seta, veja lá, foi nas costas, e eu fiquei atrapalhado com medo de que poderia ter veneno. Da outra vez estávamos cercados, e muito atrapalhados, à espera de reforços, eles atiraram-se com tamanha violência que estivemos horas em contínuo tiroteio. Só consegui descansar um pouco quando os nossos camaradas apareceram. Nessa altura passei a mão pela barriga e vi que estava cheia de sangue. Fiquei aterrorizado. Comecei a procurar donde é que ele vinha e foi então que descobri a lesão no pescoço.
- Uma bala de raspão?
- Com certeza, foi.
- Mais uns milímetros e a carótida ia à vida.
- Não tinha que morrer na altura. Disse, libertando um sorriso suave, que, apesar das dramáticas vivências de guerra, não revelava qualquer sinal de stress pós traumático.
A conversa continuou em redor da invulnerabilidade aos efeitos das balas que, na altura, estava amplamente disseminada entre os africanos.
A partir daqui foi um pequeno salto para dois tipos de reflexões a respeito da invulnerabilidade.
Na sequência da guerra dos trinta anos foi criado o mito de invulnerabilidade que se propagou pela Europa, sobretudo entre os soberanos e os poderosos, conhecido pelo "Passuer Kunst" que poderemos traduzir pela "Arte de Passau". Em Passau fabricava-se espadas onde se inscrevia um lobo, dando origem ao conceito de que quem usasse as lâminas com o lobo ficavam imunes na luta. A partir de então, começou-se a usar amuletos e enfeites com o objetivo de tornar invulnerável um indivíduo. Este fenómeno propagou-se de forma epidémica por tudo o que era sítio. Os talismãs conferiam a quem os utilizassem a invencibilidade sobre as lâminas e as balas. Este tipo de comportamento é muito antigo, provavelmente teve origem no paleolítico, e tinha a ver com práticas mágicas.
Atendendo à forma como muitos concidadãos se comportam face à justiça, só posso concluir que estes possuem um talismã qualquer que lhes confere invulnerabilidade ao abuso dos inimigos, tribunais. Afinal, aquilo que os poderosos e soberanos do século XVII pretendiam, invencibilidade, acabou por se concretizar, pelo menos em Portugal. Não me admiraria nada que um dia destes substituíssem a "Arte de Passau" por "Arte de Portugal".
Artistas já temos, invencíveis, invulneráveis a tudo e a todos...
4 comentários:
Completamente de acordo!.
E que "fuinhas" que eles são, basta uns robalitos e zás, lá se vai a máscara...
Duzentos e tal anos antes de Cristo nascer, Roma conheceu, primeiro Políbio e depois o estrábico Estrabão, ambos geografos, que muito se dedicaram à descrição do povo Lusitano, atribuindo à sua dureza, à sua força e capacidade de resistência, poderes concedidos pelos deuses.
De um desses Lusitanos, de seu nome Viriato, nascido nas faldas da Serra de Estrela, promontório sagrado, afirma-se ter nascido da ligação de uma mortal com um deus.
Muito tempo antes, tinha sido anunciada pelos prfetas, a vinda ao mundo de uma criança do sexo masculino, dotada de uma força e inteligência incomuns, ao qual seria dada a tarefa de conduzir o seu povo nas batalhas contra o invasor, neste caso, os Romanos.
Essa criança traria no corpo uma marca. Viriato, nasceu com uma mancha numa das omoplatas. Quando se tornou guerreiro e chefe, foi-lhe imposto um colar, o qual lhe conferia a protecção divina e as capacidades que lhe permitiram combater com tanto destemor e inteligência, um inimigo imensamente superior em número, em equipamento, em treino e experiência militar, um colar que o tornou invulnerável.
Estes conceitos inexprimíveis... transcendem a linguagem, não lhe parece, caro Professor Massano Cardoso?!
;)
Transcendem, sim senhor! O pior é que os invulneráveis de hoje, tenham ou não alguma proteção divina, são a antítese de Viriato. No entanto, gozam, descaradamente, de proteção que ofende os pobres vulneráveis desta sociedade decadente e nada promissora.
Ora aí que está o grande pasmo, caro Professor; perceber o que nos (sociedade) conduziu a aceitar tamanhas "impurezas" eticas e sociais.
Se ontem se pretendiam apurar culpas, se era forçoso saber-se e condenar-se aqueles que meteram a mão onde não deviam e, naturalmente, a esses assistia-lhes o direito de provarem a sua inocência... hoje, a preocupação parece centrar-se em provar, se os que metiam a mão, poderiam ser escutados, enquanto o faziam...
Afinal a coisa parece ser sobretudo de voz oculta, e não, de face oculta.
Enviar um comentário