Número total de visualizações de páginas

terça-feira, 5 de junho de 2012

O vestido de veludo

Hesitou quando pegou no vestido comprido de veludo verde escuro, com um lindo encaixe de seda, que ainda mantinha um leve aroma do perfume que usara nos dias felizes. Era um vestido estreito, decotado e muito elegante, que lhe realçava a silhueta e a fazia sentir a mais bonita e admirada nas festas em que o usara, sem jóias ou adornos, apenas os cabelos sedosos caindo até aos ombros em suave ondulação e uma leve pintura nos olhos imensos e doces.
Custava-lhe separar-se daquele vestido, mais do que de todos os que já se amontoavam em cima da cama, que tinha tirado do armário do quarto de vestir para guardar na mala aberta no chão. Revirava-o nas mãos, deixando correr a memória dos bons momentos a que o associava, o olhar de enlevo do marido quando a levava, orgulhoso, para a pista de dança, os cumprimentos, a música, o prazer de se sentir nova e bonita, sem preocupações na sua vida então tão feliz.
Engordara um pouco com os anos e por isso há muito que não o tirava do armário, mas nunca pensara desfazer-se dele, vieram entretanto as tempestades que nunca imaginara, a ruína financeira, as discussões, o ressentimento, tudo a desmoronar-se como se nada tivesse alguma vez tido firmeza e futuro, e as roupas das festas e jantares com amigos tinham ficado esquecidas no armário à medida que as festas e os amigos tinham desaparecido.
Teve o impulso irresistível de experimentar o vestido. As mãos tremiam-lhe um pouco, de sofreguidão e medo, receando a desilusão de não se reconhecer nele e logo espantada por ele se lhe ajustar de novo ao corpo, como se lhe suplicasse que não o deixasse ir. O espelho devolvia-lhe a imagem de novo esbelta e elegante, apanhou o cabelo com um gesto sedutor e rodopiou um pouco, imaginando num instante que era de novo uma mulher atraente e feliz. Mas faltava-lhe o essencial, o brilho nos olhos, o sorriso aberto, o gesto afável e alegre que a tornavam única onde estivesse e desejada em todos os grupos. Sim, o vestido era o mesmo, assentava-lhe bem, ela é que já não servia para ele, como se lhe faltasse a alma.
Não demorou muito mais a arrumar na mala grande as peças todas que separara cuidadosamente, com o método de quem cumpre um ritual, dobrou uma a uma, verificando uma vez mais que estavam quase novas, e fechou decidida a porta do armário onde ficaram a balouçar tristemente os cabides vazios.
Parou à porta da loja de roupas de marca em 2ª mão e inspirou com força antes de entrar para vender as suas coisas. Lá dentro, falou distraidamente com a dona da loja só para se obrigar a não fugir de vergonha e humilhação enquanto esperava, amargurada, a avaliação sumária que se fazia do conteúdo da mala, para lhe fixar o preço que não poderia recusar.
Quando voltou a casa, vagueou num passo perdido até ao quarto e reparou logo no vestido de veludo verde, que ficara esquecido, todo enrodilhado, em cima da cama. Sentiu então uma súbita e inexplicável felicidade no seu despojamento, como se estivesse enfim liberta para enfrentar com coragem esta nova e terrível fase da sua vida.

15 comentários:

Catarina disse...

Não o vendi, mas desfiz-me há dois dias de um casaco de cabedal com gola de pele que não vestia há alguns anos e que estava guardado precisamente porque não só tinha sido bastante caro como também porque tinha sido bastante elogiado – o casaco... e eu, por associação!
As circunstâncias são diferentes mas os sentimentos não tanto.
Gostei de ler o texto/conto.

Bartolomeu disse...

Vestiu, olhou-se através dele,
Como se de uma janela.
Ele, que fora a sua pele.
Ele, que a tornara mais bela.

Sentiu a mistura das sensações.
Sentiu a indefinição do passado.
Vestiu-o de novo, e às ilusões.
Reviveu o tempo passado, atrasado.

Reviu-se feliz, completa, mulher.
Sem contudo perceber a saudade,
Dor que invadia o peito e fazia sofrer.
E lhe acendia o desejo de voltar à mocidade.

Viu-se naquele vestido de veludo.
Como quem se vê através de uma janela.
De ter tido a seus pés, o Mundo.
De ter sido, de entre todas, a mais bela.
;)

MM disse...

A história contada neste post é reveladora de uma imensa sensibilidade da sua autora e o espelho de mudanças terríveis na vida das pessoas e,assim, na sociedade.
Gostei muito de conhecer este "lado" da Dra. Susana.

Pinho Cardão disse...

Cara Suzana:
Mais uma cena da vida real apresentada com a arte, sensibilidade, poder descritivo, análise dos sentimentos e beleza de escrita de que só a Suzana é capaz. Uma prosa antológica. Maravilha!

Caro Bartolomeu:
Pois a poesia é sempre bem vinda! E o Bartolomeu nisso é um expoente!...
Passando a úma análise crítica e exigente,pois em poesia temos que o ser.
1ª quadra- muito boa, em termos formais e poéticos, rima rica, substantivo a rimar com adjectivo ou pronome, o que demonstra sensibilidade poética e domínio da arte. Ritmo poético.
2ª quadra-formalmente apenas sofrível, rima pobre, substantivo a rimar com substantivo, particípio com particípio. Acentuação disforme. Ritmo incerto. Mas descreve bem os sentimentos.
3ª quadra-rima mista, disconformidades no ritmo, mas situação bem descrita.
4ª quadra-descreve bem o sentimento, mas com rima pobre, falta de ritmo e acentuação disforme.
Em síntese, um poema que começou muito bem, mas foi decrescendo formal e esteticamente, facto explicável pela necessidade de o colocar como comentário ao post da Suzana, pelo que não pôde ser suficientemente trabalhado.
No entanto, tal não retira mérito ao consagrado autor. Aos leitores do 4R recomenda-se o Blog Avançando, aliás na lista de blogs do 4R, em que o Bartolomeu dá provas do seu imenso talento.
Mas crítica é crítica. Amigos, amigos, crítica à parte!...

Bartolomeu disse...

Sem dúvida, caro Dr. Pinho Cardão!
A última frase do comentário que me dirige é-me inteiramente grata.
Além de que, concordo inteiramente com a crítica construtiva que dedica às minhas quadras.
O que se deu, foi que: enquanto lia o post da cara Drª. Suzana, senti o impulso de rimar. Após ter escrito a primeira quadra, precisei de atender o telefone, o que fêz com que a inspiração... pufhhh.
Isto, não redime a falta de competência gramatical que, no meu caso, é totalmente evidente.
Fico-lhe grato por reconhecer motivos de interesse naquilo que escrevo lá no Avançando.
;)

jotaC disse...

Com as necessárias adaptações, Fernando Pessoa diz bem sobre o melhor modo de efectuarmos as travessias que a vida nos impõe...

"Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos."
Fernando Pessoa

James Dillon disse...

Eloquente, belo,

(risos na troca de comentários),

cumprimentos,
JD

António J. B. Ramalho disse...

Notável.
Que bom seria que o texto que acabei de ler fosse apenas e tão-só um fragmento de uma obra literária de maior amplitude. A avaliar pela "amostra", pelo arrebatamento que provoca, pelas emoções que relata, que transmite, que contagia, seria certamente uma obra condenada ao sucesso.
Como crónica "do tempo que passa" este artigo continua a ser interessante, porém, neste caso, deixa-nos a sensação algo estar em falta, pois certamente desejaríamos continuar ligados por mais tempo à personagem central da história e, indirectamente, à pessoa que deu cor, textura, contexto e enquadramento ao... vestido de veludo.

Suzana Toscano disse...

Cara Catarina, acho que todos tentamos guardar o que, materialmente, associamos a momentos felizes e quando nos temos que separar deles, por fúteis que sejam, é como se alijássemos também as memórias que nos traziam.É preciso muita coragem para fazer o que a heroína deste conto teve que fazer.
Cara MM, gostei de a surpreender, este blogue é muito aberto a estas incursões, o ambiente cordial e amigo dá-nos coragem para ir ensaiando de vez em quando umas novidades.
Caro Pinho Cardão, sempre em forma, esse espírito crítico, é uma barreira temível :),os versos do caro Bartolomeu mostram que a istória o inspirou, não fosse o telefonema providencial e lá se ofuscava o meu registo, foi uma sorte, é só ir espreitar o blogue Avançando, como muito bem sugere, para se ver do que falo!
Caro bartolomeu, obrigada pelo seu contributo,em verso nunca me atrevi a escrever nada, enfim, uma vez no liceu, é verdade, mas deu-me um trabalhão sobretudo porque tinha que ser em português arcaico porque era uma cantiga de amigo, veja lá ao que nos levam os seus poemas, a recordações já tão antigas, é o que se chama ser inspirador...
Caro jotac, mas que excelente citação, não conhecia mas realmente a arte de Fernando Pessoa para exprimir em meia dúzia de palavras o que aqui tentei retratar é extraordinária, e tão certeira, parece que nada lhe escapava da alma humana.
Caro James Dillan, muito obrigada.
Caro António Ramalho, muito obrigada pelas suas palavras, ainda bem que gostou deste texto, também me deu gosto escrevê-lo e é engraçado que me apetecia ter desenvolvido bastante mais precisamente porque é difícil, em meia dúzia de linhas, deixar um traço nítido de tudo o que queremos dizer. Há casos da vida que dariam belos romances pela intensidade dos acontecimentos e pelos seus reflexos, às vezes é mesmo uma tentação deixar correr a imaginação e completar assim o que apenas se vislumbrou num momento.Mas é preciso talento e arte, além de tempo, se os outros dois existissem :).

Suzana Toscano disse...

Desculpem as gralhas, "história", claro.

Massano Cardoso disse...

Já sentia necessidade de ler este tipo de texto da Suzana. Depois de um dia louco de trabalho, que acabou agora, penso eu, soube-me bem beber o "veludo verde", suave e esperançoso, que, afinal, deveremos possuir algures mas que muitos não conseguem encontrar e tocar...

Margarida Corrêa de Aguiar disse...

Suzana
Que bem que me fez ler este seu maravilhoso conto, carregado de verdades e sentimentos...

António J. B. Ramalho disse...

Suzana disse:
"Mas é preciso talento e arte, além de tempo, se os outros dois existissem :)."
Eu digo:
Resolva lá essa questão da falta de tempo.

Suzana Toscano disse...

Caro Massano cardos, é a sua sina, gostar de ouvir as histórias dos outros e guiá-los para encontrar e tocar :)
Obrigada Margarida e António Ramalho, é bom ter estes leitores!

Ilustre Mandatário do Réu disse...

Beber veludo verde só mesmo uma chartreuse verte vep. Ora a senhora da história sofreu um v.e.p. mas no final sempre se apercebeu que o mesmo não lhe fez mal nenhum.

explicar isto às mulheres é complicado. os homens por força de antigos hábitos vínicos sempre estão mais habituados a este conceito.