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terça-feira, 9 de outubro de 2012

Os ídolos do dia

O filme de Woody Allen “Para Roma com amor”tem uma parte em que o protagonista é um vulgar cidadão que um belo dia, ao sair de casa, é surpreendido por uma horda de fotógrafos e de jornalistas que o abordam com a ânsia de quem espera uma celebridade. Perseguem-no dias a fio, atropelam-se uns aos outros para lhe captarem um gesto, um sorriso, uma palavra, bombardeiam-no com perguntas como “para que lado é que dorme?”, “como é que faz a barba?”, “como gosta de comer as torradas de manhã?”, anunciando depois cada resposta no écran, com o ar triunfante de quem revela um segredo vital. O homem começa por ficar perplexo, não sabe o que terá feito para merecer tal notoriedade, pergunta, desconfiado, em que é que osdetalhes da sua vida pessoal podiam interessar às televisões, mas a mulher diz-lhe, orgulhosa, “agora somos celebridades”, não interessa saber porquê,basta vê-lo na televisão, a barbear-se de manhã ou convidado para entrevistas ridículas que passam com grande êxito e, a pouco e pouco, começa a convencer-se de que, por qualquer razão oculta, é mesmo digno de tanta atenção e popularidade, distribui autógrafos no meio da rua, o patrão dá-lhe um novo gabinete, enfim toda a sua vida passa a reflectir o novíssimo estatuto de “objecto-de-interesse-pela-comunicação-social” e ele próprio desiste de se interrogar e leva a sério a sua importância pública. A população, nas ruas, reconhece-o e presta-lhe homenagem, diz ”olha, ali vai o que faz a barba com sabão”, as pessoas riem-se com gosto das patetices que antes o teriam marginalizado e ele atreve-se a exibi-las, confiante de que terão o maior sucesso. À frente dos olhos do espectador “fabrica-se”, pura e simplesmente “fabrica-se” um caso mediático, num encadeado insistente de perguntas e respostas totalmente vazias que têm toda a aparência de “notícias”. De repente, tal como se interessaram, assim se desinteressam e, de um momento para o outro, a horda de repórteres corre a rodear outro qualquer ignoto cidadão que desce a rua pacificamente e que, ao ver-se rodeado de tal aparato “o que comeu hoje de manhã”, “como gosta das suas torradas?”, começa por estranhar, tal como a “estrela” que o antecedeu, para logo começar a sentir-se à vontade e lisonjeado com tanto assédio. O “ídolo” anterior é totalmente esquecido e, de um segundo para o outro, sem que perceba porquê, volta ao anonimato, apagado, num instante, da memória dos que ainda há pouco o adulavam na rua como se fosse um astro brilhante. É verdade que ao ver essa parte do filme nos rimos, achamos ridículo, pensamos até que W.A. está a caricaturar e a fazer troça de nós. Mas, afinal, não é o que acontece todos os dias nos écrans, tal e qual? Se pensarmos um pouco, não dá mesmo vontade rir. Uma parte substancial do que nos propõem para darmos atenção é sobretudo um turbilhão de jornalistas e repórteres, a fazer perguntas que não compreendemos a pessoas que não conhecemos e que não têm nada para nos dizer. São as estrelas do écran. Esta é também uma fórmula certeira para que não se dê importância ao que, por acaso, no meio da confusão, merecia ser perguntado e ouvido.

5 comentários:

C.e.C disse...

E questionam-se os incautos que com todo esse aparado se vêm obrigados ao desinteresse, numa real tentativa de manter a sua sanidade intelectual: "Será culpa de quem cria esse sistema fomentador de fait divers ridículos, ou será do público que continuamente lhes dá razão nos números de vendas e no sharing que lhe proporciona?"

Enfim, imagino que seja mais um caso de efeito Ouroboros.

Pedro disse...

Suzana,
a minha experiencia de vida, que já leva quase uma mão cheia de decadas, a par da convivencia com a minha filha (e respectivo grupo pré-adolescente)...enriquecido pelo convivio profissional constante, com jovens recem-formados, tem me permitido observar que assim como retrata e bem W.A. no filme...não são apenas e só as "vedetas" e "os famosos" que se tornaram volateis e imediatistas (tanto a surgir como a desaparecer).

O mesmo fenomeno se passa com as "vedetas musicais"...mas tambem nos "gostos certos"...nas "modas e vestimentos"...nos "prazeres e lazeres", etc etc.

O que de facto verifico é que o tempo que vivemos é de um "imediatismo extremado", onde as "necessidades" e estimulos surgem como que do nada, bem como as "respostas" respectivas.

Até mesmo no conhecimento, nos saberes, já se preveligia o "saber imediato" e concreto e se "desvaloriza" o Conhecimento efectivo e profundo de toda e qualquer materia...(chego a ouvir varias vezes ao dia coisas do tipo : "eu nem quero saber porque...desde que saiba o como, é o que me basta! para que perder tempo a compreender...se eu vou apenas utilizar?"

ou seja, a meu ver, é toda a postura e forma como se (não!) questiona a Vida, a Sociedade...a essencia das coisas...que se tem consubstanciado e enraizado em grande parte das novas gerações, e por consequencia na Sociedade moderna em geral (pelo menos a que conhecemos como tal!)

Julgo que é este "imediatismo" esta "superficialidade" cada vez mais vazia...que tem levado ao desmoronar dos modelos e estruturas sociais, habitualmente referenciadas como "nossa Sociedade" ou o "nosso Sistema"...

Vi o filme, gostei muito! Gosto da aparente superficialidade bem profunda e consistente com que o W.A. regista o nosso tempo.

Gostava q o retrato fosse diferente...mas infelizmente ele é bem verdadeiro!

(só espero muito, que neste emergir do imediatismo, o W.A não comece a fazer curtas, e se mantenha fiel ás longas-metragens...é sempre um deleite aprecia-lo!)

Suzana Toscano disse...

Caro C.e C. as pessoas acabam por ver o quelhes passa à frente dos olhos, se se habituam ao que não vale um caracol mas que se faz passar por genial, ou digno de notícia, deixam de ligar ao que quer que seja, daí a desvalorização de tudo o que possa ter uma ponta de interesse.
Caro Pedro, sem dúvida que é uma geração de "fast", chega depressa, passa depressa, não fica na memória, mas tudo parece conjugar-se para essa "virtude", veja o que se passa nas relações de trabalho, por exemplo, ou nas relações familiares, o que conta é o momento, não´e a perspectiva de durar. O que é de espantar é que se queira colar a estas coisas passageiras os velhos conceitos que tinham sentido, no caso dos "ídolos do dia", nascidos do nada e sumidos num instante, passam por "heróis", támbém no resto se guardam os nomes, os conceitos, mas esvazia-se o conteúdo. Mas o facto é que fica uma certa sensação de coisa nenhuma...

Bartolomeu disse...

A todas as profissões corresponde uma determinada deontologia. Ou seja, um código de regras pelo qual, aqueles que a praticam, devem guiar-se e respeitar.
Aos midia, compete-lhes observar diversas regras, entre as quais; informar com independência a verdade, sem manipulações e respeitar a intimidade de cada um. Reportar aquilo que é público e que possui carácter e conteúdo noticioso.
Mas o mundo anda de pernas para o ar e os critérios acompanham-no, assim como os níveis estatíscos de audiências e de leitores... um circo... só com palhaços.

Margarida Corrêa de Aguiar disse...

Suzana
Ainda não vi o filme, mas quero ver. Acho que já estamos num círculo vicioso de fantasia há muito tempo. O que nasceu primeiro, o ovo ou a galinha, não sei. Sei que a comunicação social constrói "ídolos", uma espécie de “espuma do dia”, completamente imbecis para satisfazer a parvoeira de uma sociedade que gosta do instantâneo e não vive sem ele. É preciso inventar, num processo de criatividade crescente e sem limites, atrair as atenções e alimentar um círculo infernal de futilidade. Parece que não há substituto, substitui outrsa coisas bem mais sérias, todos gostam...