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terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Tasca

Entrei ontem pela primeira vez numa tasca no Porto para almoçar. Gosto de comer nesta cidade, por várias razões, mas há duas que se salientam, a simpatia como sou tratado e a boa comida. Podia acrescer uma terceira, que não é de deitar fora, os valores são substancialmente mais baixos em relação a muitas zonas do país.
Entrei um pouco indeciso, confesso. O espaço era um pouco acanhado, simples, mas limpo. Graças à simpatia, natural, genuína, sem sorrisos forçados ou salamaleques urbanos e artificiais, antevi que o repasto iria correr bem. O funcionário encarregou-se de nos orientar, aceitou as nossas sugestões e acabou por ser premiado com a liberdade de escolher o vinho. O serviço foi rápido. No local onde nos encontrávamos, antevi, pelo postigo que dava ligação para a cozinha, uma senhora de idade, barrete na cabeça, idade um pouco avançada demais para aquelas funções, com sinais evidentes de ter tido uma paralisia facial e dificuldades na locomoção a apontar para problemas das coxo-femurais. Não consigo deixar de usar a minha condição de médico para fazer certos diagnósticos. Não são ossos do ofício, mas sim manias que não consigo evitar. A par de todos os sinais evidentes, vi que a senhora não estava bem. O sacrifício era evidente, mas ia despachando o serviço, e muito bem, como pude observar ao fim de algum tempo através da qualidade da comida. O que leva uma pessoa naquelas condições a trabalhar? Já merecia descanso. O corpo ansiava por isso, mas o espírito denotava uma força superior. Ainda consegui ouvir, embora com alguma dificuldade, comentários sobre o hospital. Foi quando entrou uma senhora, talvez da mesma idade, vestida de negro e muito sorridente, à custa de uma branca dentadura postiça que ameaçava saltar a qualquer momento. Apercebi-me que havia qualquer coisa que não estava a correr bem. Encaixava-se perfeitamente com a senhora da cozinha. A sua simpatia e educação eram mais do que evidente. Emanava ternura e compreensão. Olhou-nos mais do que uma vez.
Hoje, como sou um animal de hábitos, fui ao mesmo sítio. Adapto-me com uma facilidade incrível. Basta ser bem tratado da primeira vez. O funcionário reconheceu-nos e tratou-nos como se fôssemos velhos conhecidos. Atenções e mordomias. Um encanto ser tratado daquela maneira num local muito simples. Hoje, eu pedi um prato e a minha mulher outro. Ao fim de algum tempo tinha o meu. A senhora apercebeu-se, saiu da cozinha e veio pedir desculpa por não terem sido apresentados em simultâneo. Julgava que eram pedidos para mesas diferentes. Nunca me tinha acontecido nada parecido. Mas a conversa continuou, e a senhora explicou que estava muito cansada e com dores nas ancas e que iria sentar-se um pouco. Estava ali para fazer um favor; aposentou-se há mais de seis anos. Pediram-lhe para ajudar, porque a cozinheira tinha caido nas escadas do metro e partiu a perna e deu cabo da cabeça. - Está no hospital. Coitada. Pediram-me para dar uma ajuda e aqui estou eu. Cheia de dores, cansada, mas que hei de fazer? Tenho que ajudá-los. Não acha? Disse para a minha mulher. Ao mesmo tempo que ia explanando, com uma liberdade e sinceridade únicas, a duas pessoas desconhecidas, as suas maleitas e explicações para o ocorrido, perguntava se precisávamos de mais alguma coisa e se estava tudo bem. Ouvia sem dizer nada. Mas a minha minha mulher não, entrou na cena com uma facilidade difícil de explicar. É habitual atrair certo tipos de pessoas. Sorri. Não tarda e toma conta conta da tasca. A senhora pediu mais uma vez desculpa pelo desfasamento do serviço, agarrou numa cadeira e levou-a para a cozinha. - Tenho que descansar. Não aguento as dores. Mas tenho de trabalhar para os ajudar. E não sei quando a cozinheira vai regressar. Oh vida! Oh vida!
Terminei dizendo: - Amanhã já não vamos estar aqui. Se estivéssemos vínhamos a esta tasca e sabe-se lá o que é que iríamos ouvir e conhecer. - Tudo.
É assim que se começa a fazer amizades. Não sei como a senhora se chama e nem ela sabe quem somos. Mas não é preciso, primeiro irmana-se numa estranha e inesperada simpatia e depois o tempo faz o resto…

2 comentários:

Bartolomeu disse...

Portugal na sua face mais genuina. Uma face e uma genuinidade que se vai extinguindo, porque a cada dia se vai transformando pela sobreposição de uma máscara medonha e imprecisa, que aos poucos deixa de o ser, passando a ser ela, a própria face.

Unknown disse...

O Dr. tem o dom de nos "levar consigo"...
Bem Haja.