Sábado, na esplanada do café da ponte da praça, debaixo de um frondoso chorão, e ao lado da teimosa ribeira que liberta uma suave e inconfundível brisa, presenciei com os velhos amigos do burgo os diversos tipos de comportamento dos condutores que se confrontaram com as novas posturas municipais.
A Câmara proibiu, e bem, a circulação automóvel numa velha rua que desagua na praça do município. A razão é muito simples de explicar, sempre que passava um automóvel, os peões eram obrigados a parar e a encostarem-se, ou melhor, a colarem-se às velhas paredes de granito. Não havia risco de sujar as calças ou as saias, já que ao longo de dezenas de anos, a limpeza foi garantida por esta prática. Claro que os mais obesos tinham que encolher as barrigas e, mesmo assim, nalguns casos, os espelhos laterais roçavam as mais proeminentes.
Na velha, estreita e castiça ponte setecentista da praça do município passou a haver apenas um sentido. Logo, os que provinham da margem direita têm, agora, que percorrer mais dois minutos circundando a parte central do núcleo histórico.
As novas regras começaram no dia 1 de Junho. O pessoal da esplanada começou a analisar os diferentes tipos de reacções. Deste modo, acabamos por criar quatro tipos. Os “distraídos” – habituados a fazer diariamente aquele percurso – não viam o sinal de sentido proibido. O pessoal ria-se e fazia os respectivos comentários. Claro que os condutores, pessoas conhecidas, paravam os carros e perguntavam por que é que estávamos a rir. E lá explicávamos as razões. A maioria ficava estupefacta argumentando que realmente não tinha reparado. – Ainda bem que a guarda não estava aqui! Cada um tentava antever o que é que o próximo iria fazer. Quando apareceu o Zé da Laurinda, todos foram unânimes: o Zé vai borrifar-se para o sinal e ainda por cima vai mandar umas valentes bocas. Assim foi! Olhou para o sinal, fez um gesto típico de desagrado, passou a estreita ponte e, logo após ter estacionado o carro, começou a escoicear à sua maneira, insultando os responsáveis por aquela enormidade. Não concordava e ia continuar a fazer aquele percurso. Há mais de trinta anos que vai à casa da mãe e agora querem que ele dê aquela volta toda! Estão doidos, era o que mais faltava! A mãe lá tentava acalmá-lo, mas nada! Classificámo-lo como o típico “produtor independente das normas”. O Nelo Taborda, lá ia contabilizando em voz alta as infracções. Foi quando apareceu o Zé Carlos. – O Zé é um rapaz certinho e não vai infringir as regras. Assim foi, abrandou e disse: - Já vou ter convosco daqui a um minuto. E, pronto, lá foi circundar o centro. Foi classificado como “cumpridor”. Eis quando apareceu a sonsinha. Perguntei ao Nelo: - Qual é o teu prognóstico? Respondeu: - Com esta só uma tripla! A sonsa parou com ar meio apatetado face ao sinal. Em seguida, avançou um metro. Hesitou. Recuou outro tanto, e, de repente, após ter olhado para todos os lados, inclusive os clientes da esplanada, avançou com toda a naturalidade, mantendo a fácies mais virginal deste mundo… Classificada como “oportunista”.
- Então Nelo, onde vais? - Vou buscar outro caderno que este já está cheio. – Mas olha que ainda falta mais dois tipos! – Quais? – O guarda-republicano e os “prostáticos oficiais”. – Não estou a entender! O guarda-republicano só se for para multar. - Hoje faziam aqui umas valentes massas! Quanto aos outros… “prós..estáticos oficiais?! Não percebo! – Estou a ler uma notícia segundo a qual a GNR, de uma forma puramente discricionária, não aplica contra-ordenações ao dito pessoal “oficial” quer usem carros do estado ou não. Tudo, porque estas criaturas invocam que a infracção foi devida a “urgência”. Uma gaita, só se for urgência urinária, claro. – Ah, estou a compreender. Pois, pois! Mas as mulheres não têm próstata! Como é que a “sonsinha”, iria justificar a infracção? – Sei lá! Mas podes ter a certeza que não era multada…
4 comentários:
Singela estória de um tempo que teima em resistir à voragem da vida pós-moderna.
Lá na praça onde decorre a acção não parece haver lugar aos “urbano-depresssivos”.
É bom saborear as coisas simples e os costumes sem a sofisticação do preceito ou o condicionamento da razão pura. A melhor forma de conhecer a natureza humana ainda é através do humor, talhado na observação empírica das gentes. Felizmente, este ameno lugar telúrico ainda escapa aos graffiti e ao vandalismo da urbe (presumo eu?!). Caso contrário emergiria sempre o personagem-tipo “destrói primeiro e pensa depois”. No dia seguinte, talvez o proibido já fosse permitido. O sinal de trânsito, contra todas as evidências da física, migraria para outras paragens. Contorcido pela brutalidade de algum ente desprovido de esperança e de afectos. E, depois, sem a evidência do sinal, nada haveria a assinalar. Bem-haja por esta história sobre o que ainda permanece, de bom, na integridade do interior.
Não há graffiti, nem vandalismo. Houve só o rodar do sinal durante a noite. No dia seguinte, os automobilistas, atrapalhados, ficaram sem saber como sair da situação! Até que um deles voltou a rodá-lo, colocando-o na posição correcta…
Ah! Já agora, ao longo da ribeira, do viaduto, e de algumas ruas, estão colocadas inúmeras floreiras, muitas delas suspensas, imanando interessantes cores, frescura e beleza. É bom partilhar certos espaços e tempos…
Grande Zé da Laurinda!
Se todos fossem como ele, seríamos outro país. Infelizmente, somos todos sonsos....
PS: Grande post!
Amiga Clara Carneiro
Concordo consigo quando diz que observar os comportamentos das pessoas é um passatempo muito enriquecedor e esclarecedor. Não foi à beira do Mondego, porque para estas bandas já se observa algum grau de “urbano-depressão, utilizando a feliz expressão do Félix Esménio. O caso passou-se em Santa Comba Dão junto à ribeira das Hortas. Fica desde já convidada, assim como os nossos colegas da 4R e habituais comentadores a desfrutarem dos encantos de uma terra do interior que não se esgota na esplanada da ponte da praça.
Quanto às urgências femininas, claro, Clara…
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