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sábado, 26 de novembro de 2011

"Oásis"

A rotina dos sábados sofre de tempos a tempos alguns estremeções, por vezes violentas, que me leva a ruminar velhos acontecimentos ou a despertar para novos achados.
O sol estava muito bem disposto e convidou-me a sentar na esplanada oferecendo os seus deliciosos raios, que bem se esforçaram por aquecer-me. Peguei no jornal e comecei a navegar pelas páginas, mais à procura de algo que me interessasse do que preocupado com as habituais e esperadas notícias. Quando cheguei vi apenas um velho amigo sentado. Bom dia, Manel. Bom dia. Sentei-me virado para a ribeira. Passado algum tempo ouvi, nas minhas costas, uma pequena conversa. Alguém falava com o Manel. Morreu o Arlindo. O Arlindo? Qual Arlindo? O que tinha o café. Sobressaltei-me, fechei o jornal e pus-me a pensar nos "Arlindos" da terra. Será que é o Arlindo do Oásis? Virei-me e disparei, qual Arlindo? O Arlindo que tinha o café junto do rio, o do Oásis. Não me diga. Trabalhava em Aveiro. Eu sei, há muitos anos que não o vejo, muitos mesmo. O funeral foi ontem. Que idade é que ele tinha? Setenta e quatro. Pois deve ser isso deve. Continuámos a esticar a conversa, como é típico destes casos, enquanto que refazia mentalmente todo um percurso da adolescência durante o qual o meu amigo me marcou de forma particular. Tinha um café na estação, onde íamos ver a televisão em miúdo. Foi nesse café que aprendi a jogar bilhar, era um exímio jogador e ninguém conseguia derrotá-lo, a ponto de ele jogar sempre às três tabelas e os adversários bilhar simples. Ensinou-me muitos truques e técnicas. Adorava jogar com ele. Dava-me muitas vezes vinte tacadas de avanço em vinte e cinco e eu acabava por perder. Fazia palavras cruzadas e obrigava-me também a fazê-las, uma espécie de concurso, para ver quem acabava primeiro. Ele era sempre o primeiro. Tinha um gravador, o único da terra, com o qual abrilhantava pequenas festas e bailaricos. Sabia dançar muito bem. Tinha uma moto potente que andava sempre a montar e a desmontar. Quando me dava boleia para ir à vila ficava sem ar. Andava muito depressa, com segurança, mas eu não sentia grande prazer. Talvez fosse por isso que nunca gostei de motos. Agarra-te bem, ouviste? Nas curvas deixa-te ir, não faças nada que eu controlo tudo. Pois, pois, o pior é quando fazia um ângulo inferior a 45 graus e via os paralelos a aproximarem-se. Mais tarde mudou-se para junto da ponte onde havia um jardim mal cuidado. Pediu autorização e remodelou aquele espaço de árvores frondosas. Transformou-o num verdadeiro oásis onde construiu um pequeno e discreto estabelecimento. O Oásis foi o melhor e mais importante espaço de convívio da terra, permitindo, durante muitos anos, debater ideias, desfrutar festas, numa socialização única fazendo crescer os novos e deliciando os mais velhos. Discutia-se tudo em tertúlias mais ou menos espontâneas. Os grupos ansiavam pela chegada dos diferentes elementos. Os mais novos, apesar de serem, por vezes, objeto de escárnio, eram estimulados a associar-se às velhas e experimentadas raposas. Não havia assunto que não fosse passível de debate, havia apenas muito cuidado quando se tocava na política. O espaço era aberto, olhava-se para o lado, via-se que não havia desconhecidos, baixava-se mesmo assim a voz e falava-se por enigmas, com segundas e terceiras intenções, até porque nunca se sabia se algum dos presentes não poderia ser informador ou bufo. Todo o cuidado era pouco. Só havia desacatos quando era abordado o desporto, sobretudo o futebol. Perdiam as estribeiras. Cada um fechava-se no seu clube e era o momento de discussão a ponto de alguns desaparecerem durante dias e ficarem mesmo zangados. Com o Arlindo não se podia falar mal do Sporting. Ficava possesso. De elétrico passava quase para um estado convulsivo capaz de destruir o Oásis. Chiça! Até o Pinóquio, o cão malhado, desaparecia durante dias, não sei se era por causa do Sporting ou se era por medo do dono. Então, o Pinóquio desapareceu outra vez? Foi às cadelas. Hum! É certo que o cãozito deveria sofrer de satiríase canina, mas daí a desaparecer durante tantos dias. Depois voltava fazendo jus ao termo escanzelado.
As lembranças não ficam por aqui, ensinou-me a jogar xadrez, que ganhava a toda a gente, e a quem um dia comecei a impor empates, o que era para mim o equivalente a uma vitória. Meu Deus, passei o resto da manhã a recordar tantas coisas que aprendi naquele espaço, onde também me diverti em comunhão com muitas pessoas e com o rio Dão, o rio da minha infância e adolescência, enterrado pela albufeira que acabou por afogar o Oásis. Resta-me um pequenino oásis na minha memória onde me refugiei ao escrever este texto.
Morreu o Arlindo!

4 comentários:

Catarina disse...

Ter-se-ia apercebido, o sr. Arlindo, do impacto que teve nesta criança?
Pequenos grandes gestos que são recordados algumas décadas mais tarde como uma forma de homenagem.

Bartolomeu disse...

Ao que parece, o sentido da vida, resume-se a morrermos uns pelos outros... e aquilo que nos parece ser tudo... nada é.
De Fernando Pessoa:

Dorme, mãe pátria, nula e postergada
E, se um sonho de esperança te surgir,
Não creias nele, porque tudo é nada,
E nunca vem aquilo que há-de vir.

Tavares Moreira disse...

Belíssima evocação, caro Professor...e que memória prodigiosa essa, capaz de recordar tantos ""Detalhes" da vida de um Médico"!

Rui Moura disse...

Olá “Cardosinho”, como meu Pai, O Arlindo, carinhosamente se referia a si. Sinceramente sorri ao ler este texto de algumas memórias e influências que o meu Pai ajudou a criar. De facto o meu Pai foi uma pessoa rara que para além de inteligente e dotado de um enorme coração sempre fez as coisas “à maneira dele”. Os exemplos que ele me deu foram sempre uma espécie de “why not?”. De facto há pessoas que observam aquilo que já existe e replicam e outros vêem aquilo que não existe e dizem “Porque não?!”. O Oásis do meu Pai era uma espécie de “why not?” que se destacou numa época e num local especialmente influenciados pelo conservadorismo do regime. O meu Pai contribuiu para proporcionar essa pequena lufada de ar fresco que podemos chamar liberdade de expressão.
Uma parte do meu Pai continua vivo em mim e nas pessoas amigas que o conheceram e tenho a certeza que se ele lesse o seu texto de homenagem ficaria muito honrado. Aproveito para afirmar, em nome dele, a admiração e a amizade que ele nutria pelo “Cardosinho”.
Para já e ao jeito do que se dizia na antiguidade, em relação aos reis, de facto Morreu o Arlindo mas Long Live Arlindo…

Um grande bem haja, Rui