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domingo, 19 de agosto de 2012

Noite...

Por mais que viva não consigo conciliar certos acontecimentos que me fazem despertar sentimentos e emoções tão díspares. Além de não conseguir fico com uma estranha sensação de que algo não está bem ou, então, acabo por sentir uma indisposição na alma que não me deixa em paz. Estou em férias e tento descansar no verdadeiro sentido do termo. Mas como é já habitual, acabo por ter de passar por situações menos agradáveis. É uma sina a que não consigo fugir. Eu queria descansar o corpo, mas também a alma. O primeiro ainda vai resfolgando na modorra estival, mas a alma não tem esse direito. Um amigo, a quem foi diagnosticado uma situação grave, muito grave, e com quem tive há poucas semanas a última conversa, tem-me perturbado o meu sossego. Nesta semana, tive de tentar arranjar outros meios, mais sofisticados, para poder aliviar-lhe o seu sofrimento. Contactos, mais contactos e ficou tudo preparado para que na segunda-feira pudesse dar início à última fase da vida, minimizar as excruciantes dores. Sexta-feira, hora de jantar, comunicaram-me que tinha acabado de falecer. Velório em casa. Fui vê-lo. Evito olhar para a face de um morto conhecido. Desta feita não consegui. Comecei a reviver alguns períodos, sobretudo os das campanhas eleitorais autárquicas. Gostava tanto, que, apesar de não fazer parte das listas, tirava sempre uma semana de férias para nos acompanhar, transformando-se praticamente no meu ajudante e motorista. Trazia as suas bandeiras. Uma delas, a nacional, um belo estandarte de tecido fino, soberanamente bem cuidado, que não deixava ninguém tocar, era o seu orgulho. Como era seu amigo e médico, tinha o privilégio de a empunhar sempre que o desejasse. Bom, e as histórias que passámos juntos? E as histórias que me contava e as que revivíamos? E as festanças durante as campanhas, a ponto de corrermos o risco de ter de as encurtar por motivos óbvios? E o último dia da campanha em que éramos os últimos a fechar a caravana? Tantas recordações. Mentalmente disse-lhe que não ia ao funeral no dia seguinte, já tinha tudo preparado para passar três dias paras as bandas de Ponte de Lima e como já nos tínhamos despedidos em vida há poucas semanas, agora era eu que me despedia dele, morto, mas, ao menos, sabia que estava tranquilo e sem sofrimento. Apeteceu-me pedir-lhe a bandeira que tantas alegrias nos deu e que está impregnada de bons e saudáveis sentimentos e recordações. Não é que me seja difícil arranjar uma, mas aquela, aquela é muito especial. Ou aquela ou nenhuma. Saí. No dia seguinte fiz o percurso e à noite, sábado minhoto, sábado de alegria, no meio daquelas aldeias espalhadas pelos montes e várzeas, deslumbrei-me com inúmeras manifestações de vida. Arraiais e músicas ecoando por toda a parte, misturando-se umas com as outras e sinos das igrejas a darem as meias-noites, perfeitamente dessincronizadas, como se cada uma tivesse o seu próprio tempo, o mesmo acontecendo ao fogo de artifício que emanava de todos os pontos cardeais, num verdadeiro foguear ao desafio. Uma noite suave, cheia de encanto, de cor, de som, de vida, de esperança, de alegria, tudo a emergir da terra em direção ao céu, como se fosse a melhor forma de dar significado à existência, deixando, o que lhe fica nas suas entranhas, entregue ao esquecimento.
Na varanda da casa minhota, rodeada por uma natureza única, bela e fértil, começo a sentir uma brisa fria transportada pela noite. Deve ser o Lima, pensei. Há pouco passei o rio de uma margem até à outra e olhei para as suas águas na esperança de que me fizesse esquecer. Não surtiu efeito. Será que esta brisa riscada de humidade, proveniente do rio do esquecimento conseguirá ajudar-me a passar a noite?

9 comentários:

Bartolomeu disse...

Para mim, Salvador Manuel Correia Massano Cardoso, o Homem; não o professor universitário, o médico, ou a figura política, o Homem: é um "poeta da vida".
Lancei-lhe à dias um desafio, no post que intitulou "Mimi", quando fiz menção às figuras de um romance de Alexandre Cury. Nessa passagem que mencionei, o jóvem médico encontra um mendigo de rua que diz ter conhecido o mendigo, cadáver da aula de anatomia, mas, que só falará dele, se o médico lhe responder à pergunta: Qual a diferença entre um poeta e um poeta da vida?
O Homem, Salvador Manuel Correia Massano Cardoso, conhece a resposta, porque ele vive a vida encontrando-se a miude com a poesia. Encontra a poesia na relação com os seus semelhantes, tanto na saúde como na doença, tanto na vida, como na morte, tanto na tristeza, como na alegria. Encontra a poesia no remanso da ribeira dos seus anos de garoto, no murmúrio do vento na folhagem das velhas árvores que a bordejam. Encontra poesia nas velhas peças que resgata das lojas de antiquários, nas velhas folhas dos livros e das aguarelas que descobre em velhos alfarrabistas. Encontra poesia na fragilidade humana e porque a encontra, sofre com ela; porque entende a imutabilidade das coisas.
Pessoa, conhecia também ele, essa diferença.
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
;)

Anónimo disse...

O que vale, meu caro Professor, é que a essas noites sucedem sempre dias, alguns luminosos, plenos de festa e de música, como esses que o deslumbram aí, nesse Minho que é a representação do eterno ciclo da renovação. Abraço.

jotaC disse...

Caro Professor Massano Cardoso,
Julgo compreender os sentimentos e as emoções díspares conflituantes, que presumo estarem implícitas nos primeiros períodos do seu texto, que mais não são do que a constância própria das personalidades contemplativas das coisas e da vida, numa busca permanente na modelação das imperfeições que, embora nem sempre desejadas, uma força estranha obriga a direcionar naquele sentido.
As recordações: boas e más, trazidas pela memória, a perpetuar as coisas e a vida em cores fantásticas, que os olhos fechados conseguem ver, não permitindo, mais uma vez, o desejado descanso…
O espaço. Em festa: as romarias, o toque agudo dos sinos dessincronizados; a visão do Palácio da Brejoeira (algo fantasmagórica) a quem passa na estrada apressado e desprevenido, a fazer lembrar castelos de príncipes encantados; a paisagem bucólica, o vinho verde e a gastronomia, a convidarem ao lazer…e por fim o rio lima ao "esquecimento"…
Bom esquecimento, continuando a postar!

Massano Cardoso disse...

Ando há muito a tentar compreender a vida. Não consegui, não consigo e, provavelmente, nunca conseguirei. Mas vou tentar até deixar de entender o que me preocupa, talvez nesse momento eu passe, finalmente, a compreender...

Margarida Corrêa de Aguiar disse...

Caro Professor Massano Cardoso
Como gostaria de escrever assim. O seu texto trouxe-me à memória um dos meus melhores amigos de sempre, era como um irmão. Será sempre um Amigo, não existirá "rio do esquecimento".
Bom descanso, um abraço amigo.

Catarina disse...

E eu também. Como gostaria de me expressar desta forma!
Abraço amigo e forte!

Bartolomeu disse...

Ai... a busca da compreensão, caro Professor; essa arrebatadora tentação que acompanha o Homem desde as profundezas do tempo.
Senti-me tentado a ir acordar Dante para trocarmos impressões acerca do sentido da vida, depois pensei, não. Dante é semi-irrealista, vamos antes convocar Einestein, pedimos-lhe para nos falar melhor da quântica e dos mundos paralelos, das subjectividades dos "Eus" que habita em cada um de nós e dos hiatos que os separam, intervalam e... ao fim e ao cabo os definem, conferindo-lhes uma identidade própria que se mescla daquela coisa indefinida que ainda ninguém percebeu ao certo para que serve, e que se conhece pela designação de livre-arbítrio.
Mas não, decidi também não optar por este caminho, escolhi outro, que considero muito menos complicado, mais simples de entender; a Fé!
A Fé! Esse sentimento indefinível, mas capaz de nos conduzir, de nos mostrar um rumo, de nos fazer Ver, aquilo para que não conseguimos vislumbrar a razão.
E como encontrar essa Fé e como conseguir interioriza-la.
Dizem aqueles que mais parece entenderem as questões relacionadas com o espírito, ou a essência humana, que basta para isso, descermos ao mais fundo de nós mesmo, despir-nos e despojar-nos de qualquer sentimento de vaidade, de superioridade, conhecermo-nos melhor interiormente, percebermos de que somos feitos e irmanarmo-nos com a Terra e com a Natureza, recebendo delas a energia que geram e renovando a nossa. Abrindo canais para que essas energias fluam livremente.
Será?
É bem possível que seja...
Na verdade, quando optamos por questionar, aquilo com que deparamos normalmente, são novas questões que nos colocam o cérebro num torvelinho, nos roubam o sono e nos trazem inquietos. Contudo, mantemo-nos sem perceber porque gira o Mundo.
;)

Massano Cardoso disse...

A vantagem de escrever é isto, desencadear reações que me obrigam a colocar novas perguntas, encontrar meias respostas e, sobretudo, conhecer algumas emoções, qual delas a mais inspiradora. Sabe bem, pelo que não posso deixar de agradecer.

Bartolomeu disse...

Pela minha parte, dispenso qualquer agradecimento; considero-me largamente compensado, quando o meu comentário, dá origem a outro comentário. Também eles me sabem bem, e fazem desencadear novas reações e reflexões.
O mundo dos nossos dias apresentase-nos recheado de interrogações e de afirmações, também.
No entanto, sempre que essas afirmações suscitam a nossa atenção e nos dirigem à reflexão, esbarramos invariávelmente em novas e mais intrincadas dúvidas.
Uma das actuais que tem prendido a minha atenção, relaciona-se com a visível degradação social, económica, política e religiosa de que, a olho nú, temos oportunidade de confirmar.
Se nos ocuparmos com o tema e percorrermos os escaparates das livrarias, encontramos um número infindável de autores-profetas, mais ou menos céticos, mais ou menos empíricos que nos mostram pontas e nem sempre identificam a formula que encontraram para as unir, deixando ao leitor a tarefa mais ou menos telepática de as descobrir e de a elas se filiar.
Se optarmos pelo vasto planalto da internet, encontramos igualmente sítios, muitos deles com imágens, montadas ou não, que demonstram as mudanças que o mundo está a conhecer, quem as orquestra e qual o fim que deseja atingir.
Portanto, caro Professor, em boa consciência lhe digo "lo que será, será - whatever will be will be"
(podia ter colocado a seguir o vídeo com a Doris Day, mas, optei pelo Zé Feliciano - um cego com muita visão)
http://www.youtube.com/watch?v=a22E1YGTSoc
;)