Um destes fins de semana passeávamos pela Serra da Lousã quando
de repente nos surgiu a placa indicativa de Santo António da Neve. Veio-nos à
memória uma leitura acerca de uma atividade insólita desenvolvida há séculos atrás: o comércio da neve em pleno verão a partir da serra da Lousã. Curiosos por verificar se existiam vestígios que confirmassem os relatos ou se os mesmos não passariam de fantasia popular, percorremos uns poucos quilómetros por estrada íngreme e que exibe bem os sinais de como são agrestes os elementos por aqueles sítios. Valeu a pena pois mais do que vestígios ali estavam as provas de uma história incrível mas verdadeira.
Existem registos de que, no ultimo
quartel do século XVIII a corte portuguesa em Lisboa beneficiava em pleno verão
do conforto proporcionado pela neve que era recolhida no inverno por ali, na freguesia de Coentral
no topo da Lousã, concelho de Castanheira de Pera. A atividade tinha tal relevo que existia, ao que
parece, o cargo de neveiro-real. E constituía o ganha pão das gentes que ali habitavam, que todos os anos rezavam para que o inverno fosse pródigo em neve.
Uma vez recolhida, era então guardada e compactada em
poços cobertos, construções de xisto com uma singela abertura voltada a
nascente chamados neveiros (como aquele que fotografámos e que se encontra
intacto).
Quando chegava o tempo quente, a neve era cortada e seguia em
grandes blocos para Lisboa, transportada numa primeira etapa em carros de bois.
Atenta a distância, os blocos eram envoltos em palha e assim isolados do
calor para que não derretesse pelo caminho. Em Constância
embarcavam-na e seguia pelo rio até à Capital.
Rezam as crónicas que por volta de 1782 a neve era vendida
em Lisboa num botequim onde hoje se situa o Martinho da Arcada. Por causa desse comércio o estabelecimento foi sucessivamente conhecido por Casa
da Neve, Casa do Café Italiana, Café do Comércio e Café Martinho. Esta última
designação deriva de ter sido seu
proprietário um tal Martinho Rodrigues que em 1810 foi “contratador” da neve do
Coentral. Tinha um depósito de neve na Travessa da Parreirinha (próximo do
Teatro de S. Carlos), que aliás não era o único existente em Lisboa.
Uma incursão pela internet e por fontes referenciadas permitiu saber um pouco mais. Edições de A Gazeta de Lisboa, que se publicava no século XVIII, contêm relatos
de venda de neve no botequim da Casa da Opera da Rua dos Condes e na loja de
José Rodrigues Ferreira no Largo do Rato.
A etognosia de alguns dos lugares mais remotos fascina. E
neste tempo em que julgamos que só a técnica e a tecnologia nos permitiram os cómodos
mais vulgares e acessíveis, visitar estes locais e conhecer a sua história
faz-nos perceber que o progresso é afinal o processo em que o génio humano se vai
paulatinamente substituindo ao esforço e ao sacrifício.
12 comentários:
Muito bem. Uma viagem sedutora que já tive oportunidade de realizar e de imaginar os acontecimentos ao redor destes velhos "frigoríficos", que funcionavam impecavelmente sem contribuírem para o aumento do dióxido de carbono, bom, também havia, na altura, a emissão de um gás com efeito estufa, o metano libertado pelos bovinos, mas deveria ser coisa residual!
Caro Ferreira de Almeida:
A sorte é que, na altura, não havia uma ASAE real que revistasse os neveiros, os boieiros, os armazeneiros e os cozinheiros...
Tempos são tempos, mas pensar em utilizar hoje um produto desses na confecção alimentar...
Aliás, estou em crer que o nosso amigo Bartolomeu não deixará de ripostar com os neveiros reais da Serra do Montejunto. Bem mais perto da capital, a neve chegava mais fresca para os sorvetes da realeza.
Creio bem que a neve da Lousã tinha um destino bem mais pequeno burguês...
O engenho contava com mão de obra barata e mesmo assim só chegava esse conforto à mesa real, foi preciso muito ensino, investigação, inteligência treinada para fazer desse saber negócio, risco, publicidade, mais mão de obra barata para fazer frigoríficos, depois subir os salários (ou o crédito) para todos terem gelo em casa, enfim, uma longa e vitoriosa evolução da inteligência humana e da vontade de melhorar a vida. Encontrar esses vestígios de outras épocas, ou ler um pouco de História, mostra como o Homem é difícil de derrotar!
Tem razão, caro Dr. Pinho Cardão.
;)
Compete-me reivindicar a primazia da real fábrica de gêlo de Montejunto.
A "moda" do consumo de gêlo, foi introduzida em Portugal durante a terceira dinastia, a Filipina. Nessa época, nuestros hermanos já sabiam apreciar a frescura do gelado nos meses quentes de Verão.
Reivindico ainda, sem qualquer desprimor para o excelente post do caro Dr. José Mário, o enquadramento "espiritual" da real fábrica de montejunto.
Espiritual por diversos motivos. Primeiro, porque a fábrica foi construída por monges Dominicanos e, um poco mais a cima da fábrica, encontram-se dois conventos Dominicanos, um que foi completamente construído cerca do ano 1220, e ocupado, o outro começado a construir 500 anos depois, ficou somente iniciado,e ainda uma igreja dedicada a Nossa Senhora das Neves e uma ermida dedicada a São João, edificada sobre o ponto mais alto da serra (666 metros, o número da besta). Relativamente ao convento que foi habitado pelos monges Dominicanos; à igreja de Nossa Senhora das Neves e eremida de S. João, verifica-se um pormenor interessante, foram contruídos durante o mesmo século XIII. Interessante também é pensarmos qual terá sido o motivo que levou os frades Dominicanos, que eram pregadores e não ermitas, a edificar tão forte construção num lugar inóspito e ainda, porque motivo, 500 anos depois, estando ainda o primeiro convento habitável mas não habitado, decidiram iniciar a construção de um novo, distante do primeiro menos de 100 metros?!
Mas é claro que podemos um dia destes organizar uma visita ao local, com almoço num excelente restaurante perto destes pontos, onde terei o maior gosto de os guiar e de fazer a explicação do processo da fabricação do gêlo.
(E eu pelo-me todo por estas coisas!!!)
;)))))
Muito obrigado, caro Bartolomeu, pelas informações. Tínhamos notícia da existência de neveiros mais próximos de Lisboa, ali na chamada serra do Cadaval. Ignorávamos esses pormenores que despertam o apetite pois, tal como o meu Amigo, também nós nos pelamos por estas coisas.
Muitos outros pontos de interesse que justificam uma visita, existem em Montejunto, caro Dr. José Mário.
Mas não só; Todo o Concelho de Alenquer é rico em pontos de interesse sobretudo de carácter religioso, merecedores de visita e conhecimento.
Por exemplo, os templos votados ao culto do Espírito Santo que são vários, e a Nossa Senhora da Conceição, padroeira de Portugal.
O culto do Espírito Santo, foi trazido para o nosso país pela Rainha Santa Isabel de Aragão(Elisabeth) mulher de D. Dinis, a qual viveu muito tempo em Alenquer, tendo eleito aquela vila como sua preferida. Em Alenquer, o culto evoluiu, aí, a rainha mandou construir uma igreja e um hospital e assim nasceu e cresceu a mística que presidiu ao ideal das descobertas do Mundo, a grande diáspora do povo portugues.
Um excelente texto, os meus Parabéns.
Mais um excelente relato a transportar para o meu imaginário estes passeios.
Obrigada.
Fiquei completamente fascinado com este artigo!E também com o comentário do Sr.Bartolomeu!
Já faz tempo que não conseguia visitar este local de eleição,a que chamam o 4 R. Prometo que daqui por diante jamais prescindirei de visita diária!Para ter o prazer de ler textos excelentes,sérios e ponderados,quer do querido Amigo Dr.T.Moreira,quer do Dr.Massano e Dr.Pinho Cardão e,porque não dizê-lo:da sagacidade e crítica elegante do Sr.Bartolomeu!
Bem Hajam!
Albérico Lopes
Agradeço-lhe, caro Albérico, a simpática referência que faz, àquilo que comento.
;)
Mais que simpática, justissima!
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