As lendas não são mais do que lembranças de memórias coletivas embriagadas de desejos e aspirações. Muitos factos são reconhecidos ao acordar, mas, face às imperfeições, exigem sucessivos retoques, qual deles o mais fantasioso e o mais belo. E assim, pincelada sobre pincelada, palavra sobre palavra, som sobre som, constrói-se um final, ou algo parecido, que, ansiosamente, pede para ser perpetuado. As lendas têm esse condão, pedem para que as perpetuemos, precisam do nosso sopro de vida e em troca concede-nos o dom de as recriar, alimentando a nossa imaginação. Não há vila, cidade ou lugarejo que não tenha a sua lenda, que a alimente, que a projete e que a proteja. Andei por várias localidades, casualmente tropecei com algumas lendas que já conhecia, outras não. Sou um amante de lendas, nelas vejo um passado cheio de fantasia, de amor, de sofrimento, de fome, fome de justiça, fome de esperança e fome de felicidade, mas também me cativa fazer as minhas próprias interpretações. Noite de verão, quente, embora suavizada pelo encantamento do rio Lima. Olho para a torre e um belo painel de azulejos descreve o episódio de Afonso Henriques, em que um frade, simpático, levou a merenda ao novel rei e aos seus homens que se entretinham na caçada, mas que, sobressaltados pela ameaça dos leoneses, puseram-se em guarda, interrompendo o repasto, e foram de encontro ao tropel ameaçador que se avizinhava ao longe. Tranquilo, o abade continuou a comer e a beber. Passado algum tempo, apareceram os homens de peleja mais o seu rei que, espantado com a atitude do abade, lhe disse: Cabras são, senhor! E daí surgiu o lugar de "Cabração" com todas as mordomias reais. Ao saltar de localidade para localidade caíam-me lendas e mais lendas. A sabedoria do abade, face à real ignorância em distinguir um rebanho de cabras selvagens de gente de armas, contrastou com o patriotismo da Inês Negra que duelou à espadeirada, à forquilhada e ao arrancar de cabelos com a Arrenegada, adepta de Castela, que a desafiou, definindo o futuro de Melgaço a favor dos portugueses. Uma luta singular a relembrar o bafordo de Arco de Valdevez, este mais real, menos lenda, mas mesmo assim a tombar para a beleza inerente à última. O galo de Barcelos teima em levantar-se sempre que se conta a lenda, não deveria ser capão com toda a certeza, mas a história da lenda das cruzes revela as consequências do mau carácter de alguém que acaba por mostrar o seu arrependimento, uma lenda que justifica muita coisa, sobretudo a necessidade da conversão, uma lenda com finalidade evangelizadora, tal como está provado no Templo do Senhor Bom Jesus da Cruz. Em Vila Real fui à Igreja da Misericórdia. Desta feita consegui visitar o monumento. O pavimento, de madeira, dividido em pequenas câmaras, numeradas, tradutor da velha prática de enterramento nas igrejas merece particular atenção. Um das campas não tinha a cobertura em madeira, era de mármore, com a seguinte inscrição,"AQUI JAZ O SANTO SOLDADO JOSÉ CUSTÓDIO INOCENTEMENTE ARCABUZADO EM 12-5-1813". Fiquei intrigado e meti conversa com o zelador da igreja que muito prestavelmente me informou que o soldado em questão foi condenado à morte por ter roubado uma píxide de ouro de uma igreja. O soldado de Mirandela não foi o ladrão, mas sim um primo que o quis comprometer. Jurou sempre a sua inocência, mas acabou por ser arcabuzado. Foi-lhe encontrado no corpo apenas uma bala, a do primo, o tal que lhe quis fazer mal. Os outros soldados dispararam para o ar. E o pai, acabado de regressar de Lisboa com o indulto real, pedido pelos próprios oficiais, que tinham o maior apreço e respeito pelo seu filho, não chegou a tempo de o salvar, mas ainda ouviu a salva de tiros ao entrar na cidade. Existem outras versões, mas esta é paradigmática daquilo de que são capazes alguns seres humanos quando querem comprometer ou destruir a vida do próximo, mas também da cegueira da justiça e da não aceitação da palavra dos que até à morte clamam pela sua inocência. A má consciência dos humanos levou-os a considerar José Custódio como o "santo soldado", como se o atributo de santo fosse uma espécie de consolação pelos males da sociedade que o levaram à morte. É mais fácil ressuscitar um galo ou converter um qualquer pervertido do que salvar a vida de um inocente...
6 comentários:
Uma texto maravilhoso...
... sempre foi mais fácil para a humanidade, tomar o caminho da desconfiança relativamente ao outro, que o do reconhecimento da honra. O da desconfiança dá lugar imediato à condenação, o da honra, necessita ser provado, confirmado e reconfirmado, para que a desconfiança e a suspeita comecem a afastar-se... com muita relutância.
Texto delicioso e comentário (de Bartomeu) muito certeiro.
Muito bom texto.
Off Topic:
Podemos esperar um post sobre isto?
http://www.nytimes.com/2012/08/23/health/fathers-age-is-linked-to-risk-of-autism-and-schizophrenia.html?_r=1&nl=todaysheadlines&emc=edit_th_20120823
Como sei que é um tema da preferência e este faz a primeira página do NYT...
heee... sssssim... acertado até certo ponto, caro(a) MM. Porque não podemos esquecer-nos de que os humanos, possuem capacidades limitadas para avaliar e definir com precisão, o que é verdade; eo que é mentira.
Daí, para a maioria das pessoas, tudo é susceptível de ser mentira, desde que não se faça acompanhar de provas irrefutáveis, do contrário.
Por princípio, as "boas" mentiras, são sempre compostas de pedaços de verdades que se casam entre si, na perfeição, o que faz com que em certos casos, como possívelmente terá sido o do "santo soldado", os investigadores e os juízes "suem as estopinhas" para os conseguir desvendar e julgar.
;)
Li este texto que me deliciou!É sempre com muito prazer que por aqui passo e fico deleitado com a finura do conto, a clareza da escrita e a correcção do conceito!Um verdadeiro oásis para meditação!
E ainda por cima,o soldado era de Mirandela!Essa princesa do Tua!De que saí ainda novo e aonde vou regressando sempre que a saude mo permite!
Parabéns Dr.Massano Cardoso!Obrigado!
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