É tarde, estou cansado, o sono coça-me a alma, quero dormir, mas ainda preciso de pensar, lembrar, sentir, ver, ouvir, tudo debaixo da noite, sentado na minha varanda. O céu está diferente, não se veem as estrelas de outrora, mas o fresco da noite é o mesmo. O silêncio perturba, antes não havia silêncios, apenas rebuliços, conversas em alta voz debitadas através de janelas escancaradas, muitas delas sob o efeito do álcool. As crianças, com os seus gritos, choros e risos, competiam com os latidos dos cães nervosos com tanta algazarra. Não há crianças, apenas vazios, ouço apenas um cão a ladrar ao longe, e um outro ao perto, um ladrar diferente, não estão nervosos, apenas sequiosos de brincadeiras. Algumas conversas não inteligíveis surgem de uma esquina, nada que se compare com os gritos e a vozearia misturados sem tom mas com muito som. Já se calaram, é pena, porque gosto de ouvir o cantar de conversas mergulhadas na brisa da noite. Tudo mudou, até as paredes e varandas das casas vizinhas, velhas, sujas, negras, a caírem, uma decadência que acompanhou o tempo do nascer do silêncio noturno, me convida a adormecer na varanda, sonhando com outros tempos. Na altura em que as paredes eram brancas, e as varandas de madeira compostas e bem ornamentadas, com vasos de plantas, podia-se ouvir o cantar feliz, quando o vinho era bom, e o choro, a lamúria e a tristeza numa cadente ladainha, que se prolongava pela noite dentro, até a última gota do mau vinho anestesiar o espírito da vizinha. Ouço, imagino ouvir, mas consigo sentir o timbre da sua voz, as palavras arrastadas, o discurso inflamado quando dava para a política, tudo misturado com os toques dos sinos da terra, e até outros, sinos longínquos que se conseguem apenas ouvir à noite quando o ar se enche de lágrimas de tristeza de almas sofredoras. Não a ouço, mas os toques dos sinos, sim. Para quê é que estão a tocar? Estão a tocar num silêncio frio, desnudado e sem almas. Estou a ouvir o sino. Pobre sino que estás a tocar mas ninguém te ouve. Eu ouço-te. Agora, o outro, que está longe, replica no seu tom, diferente, mas audível. Contam as horas, cada um à sua maneira. Estão longe um do outro e falam, falam de quê? Do tempo em que havia pessoas a ouvi-los, sentadas nas varandas, debruçadas nas janelas ou a brincar na rua. Todos falavam, uns com os outros, sozinhos, com vinho ou sem vinho, mas falavam, ouviam-se, gritavam, cantavam, até que o sono e a fadiga aparecessem e as longas badaladas da noite desaparecessem.
Agora impera o silêncio, mas o fresco da noite é o mesmo e os latidos dos cães também, não estão nervosos, estão apenas tristes.
1 comentário:
Pasmam-me o ateísmo moral e fraternal que no seio familiar e social, num tão curto espaço de tempo, se verifica ter crescido em Portugal. Este ateísmo, será capaz de no final, tornar o homem numa ilha... uma ilha deserta.
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