Setembro era um mês especial. Os dias começavam a minguar, o calor
deixava de suar e sentia o reinício das aulas a ameaçar. Mesmo assim
gostava do setembro, ainda ia ao rio e saboreava os finais de tarde com
sentido prazer. Nessa altura, em que se avizinhava o rebuliço das
vindimas, via gente nova que procuravam beber a beleza da época.
Atraídos pelo ouro do outono vinham de longe para
se misturarem com as pessoas que aqui viviam, mas não se confundiam,
eram diferentes, estranhos, bem cuidados e bem vestidos. Recordo de uma
senhora, nada nova, vestida com cuidado, que usava toilletes que não se
adaptavam ao local e aos costumes. Pintava-se com vermelhos vivos, usava
chapéu, cada dia um diferente, mas sempre ridículo como convém a este
tipo de gente. Tinha tiques estranhos. Todos paravam e comentavam, quem
seria. Um dia "descobriram" que era uma marquesa. Todos a cumprimentavam
com educação e, até, com alguma flexão. A senhora retribuía apenas com o
olhar e um sorriso descorado não obstante os lábios de vermelho
pintado. Caminhava com elegância e alguma tremulação empunhando um
distinto e prateado bordão. Construiu os seus rituais. Saia e entrava na
pensão à mesma hora, para descansar e para alguma reflexão. Nunca me
aproximei da senhora, mas seduzia-me o seu comportamento e houve quem
afirmasse que vinha para a Estação para ver ou se encontrar com o então
"chefão". Não sei se é verdade ou não, o que sei é que destoava do
ambiente de então. Via-a passear inúmeras vezes e a retirar da sua mala,
um pequeno caderno onde escrevia com uma caneta grossa e dourada. Segui
algumas vezes a "marquesa". Gostava de ver o seu andar e o rodopiar das
belas sombrinhas que trazia. Todas diferentes, coloridas, com flores,
arabescos, laços, rendinhas e outras coisas mais que me confundiam, se
chovesse, pensei, deveriam desfazer-se à primeira escanevada.
Identificava-a facilmente graças à cor e ao voltejar da sombrinha. Ia
várias vezes até à quinta do presidente, parava, olhava, encostava-se ao
muro, tirava o caderno e escrevia. Fechava o caderno e escondia-o na
sua mala colorida. Era tudo colorido, espampanante e discordante de tudo
o que via naqueles lugares e instantes. Passava em frente da casa do
presidente, e a sombrinha rodopiava com tal velocidade criando figuras
capazes de invejar o meu adorado caleidoscópio. Ia até à ponte do rio
Dão, encostava-se, tirava o caderno da mala e escrevia com a sua grossa e
bela caneta dourada. Depois regressava à pensão e aí ficava o resto do
dia em reflexão. Havia um dia em que desaparecia e eu ficava triste. O
mês de setembro chegava ao fim. No ano seguinte, quando os dias
começavam a minguar, e o calor deixava de suar, e eu sentia o reinício
das aulas a ameaçar, olhava para a pensão à espera de ver se a
"marquesa" já tinha chegado ou não. Ficava contente quando a via a
descer a calçada vestida à maneira, muito colorida, pintada de vermelho,
sombrinha e mala na mão à procura do rio Dão, como se andasse à procura
de alguma solução. Corria e avisava, a "marquesa" já veio, pois então.
Sentia uma enorme satisfação, e a senhora, cujo nome nunca soube, fazia o
mesmo que no ano anterior. Passeava, encostava-se à parede, tirava o
seu caderno e escrevia com uma bela caneta grossa e dourada. Abria a
sombrinha, colocava-a ao ombro, rodopiava-a e andava pelos mesmos
sítios. Depois acabava o setembro, e o verão e a marquesa desapareciam
para aparecerem no ano seguinte. Corria e avisava, a "marquesa" já veio,
pois então. E assim aconteceu, até que um dia só apareceram setembro e o
fim do verão.
4 comentários:
Para além da qualidade de sazonalidade que "todas" as marquesas possuem, ou a que se acham "amarradas", intriga-me o facto de não serem perpétuas... deviam; nobless oblige!
Ficava contente quando a via
a descer a calçada vestida
à maneira, muito colorida,
pintada de vermelho, mas não sorria
Sombrinha e mala na mão
à procura do rio Dão,
como se andasse à procura
de alguma solução.
Capaz de transformar a sua postura
dura,
Em doce requebro, com o chefe da estação.. o Durão (vá-se lá saber porquê)
;))))
:) espirituoso sem dúvida
Lindo texto, como sempre. Um abraço!
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