Em pequeno comecei a visitar a senhora, quase sempre vestida de negro até aos pés, rendas brancas nos punhos e no colo, cabelo branco apanhado com maestria atrás onde se destacava uma espécie de travessa, escura com estrias de ouro, fazendo com que ao redor da cabeça ficasse com a sensação de que trazia uma coroa escondida. A face, envelhecida, não transmitia alegria e emudecia qualquer um graças ao distanciamento e à firmeza do seu olhar. Na mão esquerda habituei-me a ver uma bengala cuja cabeça, enigmática, brilhava sozinha, não precisando de luz ou do sol. Era um estranho e belo prolongamento da senhora a quem me habituei chamar a "madrinha velha". Havia em todo aquele ritual algo de pouco habitual, convenções a que não estava habituado, falas e cumprimentos adequados às circunstâncias em que pontuava a enorme sala repleta de móveis, mesas, pratas, porcelanas, quadros e fotografias que me causavam muita confusão e até algum receio, não fosse agente do diabo e deitasse abaixo belas e quebradiças peças. Não dava atenção a grande coisa, estava sempre com medo. Com o tempo fui crescendo lentamente e acabei por ir sozinho. Gostava da minha companhia. Tocava à porta e, invariavelmente, aparecia passados alguns minutos depois de ouvir a estranha sineta que tinha de puxar e que se fazia ouvir ao longe, no corredor, escuro e comprido. Assim que abria a porta tinha de lhe beijar a mão que colocava à minha frente. Dava-lhe os bons dias com muito respeito e seguia-a até à sala grande, atulhada e muito escura. Junto à janela, que dava para o Rossio, sentava-se num longo canapé repleto de inúmeras almofadas de veludo. Depois de se sentar era a minha vez. De forma delicada pedia-lhe autorização e a mão direita, volteando-se no ar, dizia-me, no seu habitual silêncio, senta-te. Gostava de ficar na direção dos raios do sol que esburacava atrevidamente aquele canto, iluminando-o e aquecendo-o de forma muito agradável. Enquanto não falasse ficava calado, juntava os joelhos, estendia as mãos à espera das perguntas do costume e divertia-me com os efeitos das partículas do pó a dançar no feixe da luz. - Foste à missa? - Fui sim, madrinha. - Tens-te portado bem? - Eu penso que sim, madrinha. - E a escola? Como vão os teus estudos? Já sabes ler sozinho? Sei sim, madrinha. Entretanto agarrava no jornal, o "Diário de Coimbra", e punha-se a lê-lo usando uma lupa gigante. Era a altura de virar a cabeça e ver as letras monstruosas a sair daquele vidro. Adorava ver o efeito que produzia nas letras. Com o tempo cansava-se e colocava-me o jornal nas mãos. - Lê esta notícia! Eu lia, inicialmente ficava nervoso, não queria fazer má figura, mas depois engatava e fazia de conta que estava a ler o texto na escola. De quando em vez corrigia-me. Voltava atrás e continuava a ler. Durante esse período recostava-se, fechava os olhos e eu ficava com a sensação de que estava a dormir. Abrandava a leitura mas ouvia-a dizer: - Continua. Estás a ler muito bem. Era o momento em que a via sorrir, no final da manhã do domingo, após a missa. Ficava bela, não me assustava, e ainda me elogiava. - Muito obrigado, madrinha. - São quase horas do almoço. Espera aí. Levantava-se, agarrada ao bastão de cabeça de prata, e ia, silenciosamente, pelo longo corredor escuro, que me metia medo, até aos seus aposentos. Era o momento para saltar sobre o canapé e agarrar na lupa. Fazia tropelias com ela tentando descobrir tudo o que andava por ali. Uma maravilha brincar com a lupa. Quando me apercebia que a sua sombra começava a desenhar-se à entrada da sala colocava as coisas nos seus lugares e ficava com a postura nobre em casa da senhora nobre. Costas direitas, joelhos juntos e mãos sobre os mesmos. Quando se aproximava levantava-me e só voltava a sentar-me depois de ter recebido a sua autorização, a mão direita que volteava como se tivesse vida. Permanecia em silêncio durante alguns segundos, a sua cara de mulher austera e distante voltava a assustar e colocava na minha mão esquerda a desejada, a querida, a bela moeda de prata de dez mil réis. - Vá, são horas de ires. Não quero que a tua mãe fique preocupada. Dá-lhe um beijo meu, se faz favor. - Sim, madrinha. Levantava-me, beijava-lhe a mão direita, a mão misteriosa, e, de costas, saía até ao início do corredor escuro onde fugia à procura da porta e do sol. Na mão brilhava a moeda de prata. Uma bela moeda que nunca tinha visto o sol. E assim se passaram muitos finais de manhãs de domingo da minha infância.
Eu gostava da bela peça de prata, mas também gostava da senhora, que tinha um lindo nome e que me tratou sempre pelos meus dois nomes. A única pessoa que me tratava daquela maneira. Uma sonoridade única. Aprendi muito com ela. Muito mesmo. Era uma personagem viva de épocas remotas.
Tenho saudades da minha "madrinha velha".
Tenho saudades da minha "madrinha velha".
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