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terça-feira, 29 de abril de 2014

"A senhora"...

Em pequeno comecei a visitar a senhora, quase sempre vestida de negro até aos pés, rendas brancas nos punhos e no colo, cabelo branco apanhado com maestria atrás onde se destacava uma espécie de travessa, escura com estrias de ouro, fazendo com que ao redor da cabeça ficasse com a sensação de que trazia uma coroa escondida. A face, envelhecida, não transmitia alegria e emudecia qualquer um graças ao distanciamento e à firmeza do seu olhar. Na mão esquerda habituei-me a ver uma bengala cuja cabeça, enigmática, brilhava sozinha, não precisando de luz ou do sol. Era um estranho e belo prolongamento da senhora a quem me habituei chamar a "madrinha velha". Havia em todo aquele ritual algo de pouco habitual, convenções a que não estava habituado, falas e cumprimentos adequados às circunstâncias em que pontuava a enorme sala repleta de móveis, mesas, pratas, porcelanas, quadros e fotografias que me causavam muita confusão e até algum receio, não fosse agente do diabo e deitasse abaixo belas e quebradiças peças. Não dava atenção a grande coisa, estava sempre com medo. Com o tempo fui crescendo lentamente e acabei por ir sozinho. Gostava da minha companhia. Tocava à porta e, invariavelmente, aparecia passados alguns minutos depois de ouvir a estranha sineta que tinha de puxar e que se fazia ouvir ao longe, no corredor, escuro e comprido. Assim que abria a porta tinha de lhe beijar a mão que colocava à minha frente. Dava-lhe os bons dias com muito respeito e seguia-a até à sala grande, atulhada e muito escura. Junto à janela, que dava para o Rossio, sentava-se num longo canapé repleto de inúmeras almofadas de veludo. Depois de se sentar era a minha vez. De forma delicada pedia-lhe autorização e a mão direita, volteando-se no ar, dizia-me, no seu habitual silêncio, senta-te. Gostava de ficar na direção dos raios do sol que esburacava atrevidamente aquele canto, iluminando-o e aquecendo-o de forma muito agradável. Enquanto não falasse ficava calado, juntava os joelhos, estendia as mãos à espera das perguntas do costume e divertia-me com os efeitos das partículas do pó a dançar no feixe da luz. - Foste à missa? - Fui sim, madrinha. - Tens-te portado bem? - Eu penso que sim, madrinha. - E a escola? Como vão os teus estudos? Já sabes ler sozinho? Sei sim, madrinha. Entretanto agarrava no jornal, o "Diário de Coimbra", e punha-se a lê-lo usando uma lupa gigante. Era a altura de virar a cabeça e ver as letras monstruosas a sair daquele vidro. Adorava ver o efeito que produzia nas letras. Com o tempo cansava-se e colocava-me o jornal nas mãos. - Lê esta notícia! Eu lia, inicialmente ficava nervoso, não queria fazer má figura, mas depois engatava e fazia de conta que estava a ler o texto na escola. De quando em vez corrigia-me. Voltava atrás e continuava a ler. Durante esse período recostava-se, fechava os olhos e eu ficava com a sensação de que estava a dormir. Abrandava a leitura mas ouvia-a dizer: - Continua. Estás a ler muito bem. Era o momento em que a via sorrir, no final da manhã do domingo, após a missa. Ficava bela, não me assustava, e ainda me elogiava. - Muito obrigado, madrinha. - São quase horas do almoço. Espera aí. Levantava-se, agarrada ao bastão de cabeça de prata, e ia, silenciosamente, pelo longo corredor escuro, que me metia medo, até aos seus aposentos. Era o momento para saltar sobre o canapé e agarrar na lupa. Fazia tropelias com ela tentando descobrir tudo o que andava por ali. Uma maravilha brincar com a lupa. Quando me apercebia que a sua sombra começava a desenhar-se à entrada da sala colocava as coisas nos seus lugares e ficava com a postura nobre em casa da senhora nobre. Costas direitas, joelhos juntos e mãos sobre os mesmos. Quando se aproximava levantava-me e só voltava a sentar-me depois de ter recebido a sua autorização, a mão direita que volteava como se tivesse vida. Permanecia em silêncio durante alguns segundos, a sua cara de mulher austera e distante voltava a assustar e colocava na minha mão esquerda a desejada, a querida, a bela moeda de prata de dez mil réis. - Vá, são horas de ires. Não quero que a tua mãe fique preocupada. Dá-lhe um beijo meu, se faz favor. - Sim, madrinha. Levantava-me, beijava-lhe a mão direita, a mão misteriosa, e, de costas, saía até ao início do corredor escuro onde fugia à procura da porta e do sol. Na mão brilhava a moeda de prata. Uma bela moeda que nunca tinha visto o sol. E assim se passaram muitos finais de manhãs de domingo da minha infância.
Eu gostava da bela peça de prata, mas também gostava da senhora, que tinha um lindo nome e que me tratou sempre pelos meus dois nomes. A única pessoa que me tratava daquela maneira. Uma sonoridade única. Aprendi muito com ela. Muito mesmo. Era uma personagem viva de épocas remotas.
Tenho saudades da minha "madrinha velha".

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