Gosto de revisitar o passado apenas para saborear sentimentos,
paixões, devoções e emoções. Não preciso de muito e nem é muito complicado. É
tão simples. Uma pequena ideia, uma imagem, um som, um aroma, uma lembrança e
tudo se transforma, e eu embebedo-me como se fosse o Dionísio da Quinta do Rio.
O Dionísio existiu, foi um barbeiro, cortou-me muitas vezes o cabelo, e
brincava com os piolhos que dormiam no meio dos cabelos que sabia cortar à
maneira. Nunca se preocupou com eles e as lêndeas deveriam ser fonte de
inspiração. Piolhos para o Dionísio eram a coisa mais natural do mundo, tão
natural como beber um copo de três a meio da manhã. O Dionísio não conseguia
mexer bem o pescoço e com o tempo ficou tão rígido que sempre que queria olhar
tinha de virar o corpo. Cortava o cabelo, bebia o seu tinto em tesouradas
constantes ao longo do dia e marchava de noite, tocado pelo seu homónimo, ao
longo da linha estreita até à Quinta do Rio onde vivia. Eu gostava do Dionísio,
que nunca se enojou com os meus piolhos. Não sei se era eu que lhe oferecia ou
se era ele que os emprestava. Estoirava-os entre duas tesouradas, empurrava-os
para o meu regaço e lançava-os ao chão, pisando-os. E a conversa continuava sem
se importar com a presença dos animais. Piolhos para o Dionísio eram a mesma
coisa que os bichos das couves, natural, sem nenhuma importância. No final do
corte sacaneava-me aspergindo o álcool no pescoço. Era a altura de dar um pulo
de corça. Porra. Este gajo é doido com o álcool, prefiro de longe a comichão
dos piolhos. Ele ria-se. O Dionísio era miudinho, fraco de carnes e simpático
até meter o dedo na goela para saber se ainda havia lugar para mais um copo.
Depois o
tempo afasta-nos, mas não muito, acabamos por nos rever quando menos esperamos.
Foi o que aconteceu um dia numa fazenda, estava o Dionísio a comer de um
pequeno tacho sentado num tronco e com a garrafa de vinho ao lado. Respeitou-me
e só depois de o ter cumprimentado é que disse boa-tarde e perguntou se era
servido. Respondi que não. O pescoço estava tão rígido que não foi capaz de
rodar um milímetro que fosse. O sorriso era o mesmo quando se divertia com os
piolhos em pequeno. Fiquei incomodado, andava na jorna, já não cortava cabelos.
Não foi preciso falar. Senti que tinha acontecido algo. O Dionísio era um
artista de cabelos e não propriamente um trabalhador rural. Não é que tivesse
dificuldade em amanhar a terra, mas a sua excelência estava na tesoura, nos
comentários e na sabedoria da escola da velha barbearia. Fiquei incomodado com
a desvalorização feita ao Dionísio, que nunca teve mais de um metro e meio da
altura e nunca soube o que eram cinquenta quilos mal-amanhados. Sabia beber,
embora nunca o tivesse visto bêbado. Dizem que os cortes eram mais requintados
ao fim da tarde ou ao princípio da noite quando se deslocava na escuridão para
a negrura da sua casa.
Um dia
informaram-me que tinha tido um acidente de viação com a motorizada. Uma
modernice qualquer que tinha adquirido e que acabou por lhe provocar a morte.
Disseram-me onde foi o local do desastre. Foi há muito tempo. Hoje recordei-me
do Dionísio. Gostava dele. Cortava-me o cabelo em miúdo e matava os piolhos
como só ele sabia. Para ele piolhos eram a coisa mais natural do mundo. Ainda
me ofereceu um pente para os piolhos, amarelo. – Toma. É para os apanhares.
Mais tarde soerguia-se ou fazia de conta que se abaixava para me cumprimentar o
mais respeitosamente possível dizendo, senhor doutor! E ria-se com o mesmo
sorriso, o sorriso do Dionísio.
Hoje, bebi um copo à memória do Dionísio.
1 comentário:
Caro Professor Massano!
Recordar é viver!
Um brinde aos muitos Dionísios por esse Portugal.
Adorei o seu post, verifico que os piolhos no seu tempo de meninice eram uma espécie em abundância. Ainda bem que altura não existia a Associação SOS Animal, senão.... :)
Por falar em barbeiros, recordo-me de um no concelho da Ribeira de Pena, distrito de Vila Real de Trás os montes, numa junta perdida, cujo nome é Santo Aleixo de Além Tâmega. Creio que ainda deve existir a barbearia que foi criada por debaixo das escadas de acesso à rua da casa do barbeiro. Enfim era do mais rudimentar que pudéssemos imaginar, não havia produtos de marca, mas sim o famoso sabão azul e branco, um pincel, tesoura, navalha, pente, o famoso calendário pregado na parede, daqueles que as oficinas de automóveis tanto apregoam e álcool de 97 graus.
A evolução ali tinha passado ao lado. Cheguei a assistir a alguns cortes de cabelo. Higiene, não abundava para aqueles lados...mas o que é certo é que a barbearia funcionava sem que a ASAE tivesse conhecimento, é claro. Achei tudo aquilo estranho mas o estranho era eu. Cheguei a conversar com o barbeiro e a sua mulher no quintal, falámos do passado, da doença que apanhou em criança que o impossibilitou de poder caminhar, do presente e do futuro.
Tive também o privilégio de conhecer e de conversar na aldeia com dois irmãos que nos tempos livres são pastores, o mais velho com 22 anos e o mais novo com 10. Aprendi imensas coisas com eles, dar maças a cavalos, apanhar amoras silvestres e de sentir que era “desejado” pelo mais novo para as brincadeiras que ele tanto queria, pois meninos da idade dele eram inexistentes. Gostei das aventuras e da aprendizagem, ficou tudo gravado no meu coração, aquelas gentes,costumes, nessa semana de férias aprendi muito, pois era um estranho e de repente senti-me como eles. Questionava muitas vezes qual seria o futuro deles. E isso entristecia-me…..porque achava que ambos deviam ter as mesmas oportunidades que eu tive, nomeadamente o acesso ao ensino e trabalho. O mais velho gostava da terra mas notava que queria um dia ser aventureiro, sair para outras paragens e o mais novo…..enfim nem opinião tinha apenas disse que os terrenos que serviam de pastoreio iam ficar inundados com a futura construção da barragem, não deslumbrando com isso um futuro melhor talvez fruto da tenra idade. Por falar nisso vou verificar se a barragem já foi construída e depois direi mais noticias. Enfim, moral da história, nessa semana fiquei riquíssimo!!!
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