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terça-feira, 8 de abril de 2014

O telemóvel

A fila na caixa do supermercado já tinha várias pessoas que esperavam pacientemente que a mulher que estava a ser atendida resolvesse as suas dúvidas sobre a política de descontos de cada produto. Pessoa de aspecto humilde mas citadina, devia pertencer àquela classe pouco média em acentuado declínio, que passou a escrutinar severamente o preço de cada produto e a seleccionar os que lhe valiam ou não a despesa. O facto é que, pergunta atrás de pergunta, confirmava que afinal o bodo aos pobres dos descontos não era assim tão evidente, algumas coisas só teriam baixa se levasse dois, a embalagem em saldo não era a azul mas a verde, enfim, a empregada atendia-a pacientemente, mandava confirmar, disposta a correr aquele calvário que preenche as suas horas de trabalho. Entra então no supermercado um jovem casal com ar aflito, dirigem-se os dois àquela caixa e perguntam em voz alta, não ficou aqui um telemóvel, estivemos aqui agora mesmo a pagar e quando chegámos ao carro demos por falta dele, deve ter ficado aqui quando arrumávamos as compras nos sacos...
A caixeira disse, quase indiferente, que não tinha dado por nada mas a tal cliente que ainda não tinha encerrado a sua lista de compras largou num desatino a tirar as coisas dos seus sacos, arrastou com a mão as que ainda estavam no espaço da caixa, dizia alvoraçada, eu não vi nenhum telemóvel, se ficou aqui, aqui está, podem ver, mas como não estava lá telefone nenhum e o casal não se dava por achado, a mulher começou a abrir a mala num gesto de pânico, mostrando o conteúdo aos dois e depois à empregada da caixa e depois virando-se para a fila, quase em lágrimas, podem ver, eu não tenho aqui telemóvel nenhum, o meu ficou em casa, não tenho dinheiro para o carregar, mas não tenho inveja de quem tem, Deus me livre se fiquei com alguma coisa que não me pertença, podem ver, vejam, não está aqui nada, e escancarava a mala para que fiscalizassem, submetendo-se àquilo como se estivesse habituada a suspeitas injustas. A cena era tão constrangedora que alguns viravam a cara, para nem sequer olhar, outros saíram da fila e mudaram de caixa, o casal ficou parado, em silêncio pasmado, por fim, consolaram a mulher, deixe estar, deixe estar, que ideia a sua, ninguém a está a acusar de nada. 
Por fim, lá pegou nos seus sacos de compras e saíu, a olhar rancorosa à sua volta, não fosse alguém ainda duvidar do paradeiro do telemóvel do casal, posso ser pobre mas nunca roubei nada a ninguém, graças a Deus.

6 comentários:

Margarida Corrêa de Aguiar disse...

Suzana
Estou a imaginar a cena. As pessoas na fila já impacientes com tanta demora e, não bastando, mais o episódio do telefone. E a alvoraçada senhora que sentiu que estava a ser acusada. Uma reacção desnecessária, talvez explicada pela sua fragilidade. Pobre mas honrada!

Suzana Toscano disse...

Pareceu-me que ela não queria ir para casa, Margarida, estava ali a inventar pretextos para conversar ou para chamar as atenções, não sei, meteu-me pena e intrigou-me ao mesmo tempo. São cenas deste nosso Portugal :)

Bartolomeu disse...

Cenas de um Portugal, cada vez mais portugal(inho), caras Amigas. Aquele Portugal de quando eu era criança; um Portugal onde a palavra dada contava tanto como um documento autenticado por notário, transformou-se num outro, onde nasceu e floresceu a arte de "parecer" que, como erva infestante, suplantou a natural forma de Ser sério(a). Lembro-me muito bem de uma expressão «por ele, ponho as minhas mãos no fogo», expressão esta que traduzia a confiança na seriedade do outro e se estendia ao ponto de se ser fiador num negócio comercial. Hoje, ninguém arrisca ser fiador, mesmo de alguém que julgue conhecer.
O casalinho do supermercado é que podia ter abreviado a "coisa" se tivesse ligado de outro telemóvel, para o seu próprio... mas este pessoal jovem não pensa... ;)

Suzana Toscano disse...

Caro bartolomeu, por acaso fizeram isso, eu é que achei que o texto já ia longo, aliás foi a própria "auto suspeita" que lhes disse para fazerem isso e até lhes mostrou que da mala dela não saía som nenhum de um telefone a tocar...

Bartolomeu disse...

Ah! Compreendo... (é sempre assim...) as grandes escritoras guardam o suspense até ao final da história, até «il gran finale»!
;)

Suzana Toscano disse...

Gracias!!! :))