Lembro-me de um domingo de Páscoa. O sol brilhava intensamente na manhã do novo dia. O silêncio imperava, as andorinhas brincavam, os comboios passavam e o som da campainha ouvia-se à distância a anunciar a chegada do compasso. Nervoso, corri a avisar que não tardaria a sua chegada. Tudo preparado para receber a Cruz no final daquela manhã, porque à tarde a história iria repetir-se na vila, mais agitada e agigantada. - Já lá vêm, já lá vêm. Vinham pela velha linha estreita com o miúdo à frente a tocar incessantemente o pequeno sino. As portas estavam atapetadas à maneira, verduras e carqueja. Entraram em casa e com solenidade beijámos a Cruz e cumprimentámos o senhor prior que aspergiu tudo e todos com água benta. O odor a frescura, muito doce e suave, que competia com as deliciosas amêndoas, causou-me uma agradável sensação. Até o calor do sol arrefeceu perante esta cerimónia. A excitação continuou após a saída, porque tinha de ir almoçar a casa dos meus avós à vila. Sempre ansioso perguntava se não era horas de irmos. Fomos a pé, como era habitual, sob um sol quente e um bocado duro. À passagem pela ponte senti novamente a frescura doce e suave do rio que nesse dia emanava as sensações que tinha sentido em casa. Lembro-me de lhe ter perguntado se já tinha beijado a Cruz. Claro que tinha, pensei. A mesma frescura, igualzinha à que tinha sentido aquando da benzedura. Olhei para as águas azuis e imaginei a natureza a ser aspergida pela corrente de água benta. Só pode, pensei. As acácias espreguiçaram-se e dançaram ao ritmo da brisa, enfeitando os caminhos dando-lhes a merecida beleza.
Após o almoço a azáfama continuou. Uma loucura saber por onde andariam e a que horas é que chegariam. Entrava e saía a dar conhecimento do trajeto, alertando para que estivessem preparados, não queria faltas, queria tudo e todos nos seus lugares. Uma espécie de vigilante. Vivi aquela tarde de forma ímpar. A meio da tarde, por volta das cinco horas, a campainha começou a fazer-se ouvir ao fim da rua e, passado pouco tempo, subiu de tom e as escadas. Corremos todos para a sala onde nos perfilámos à espera da visita. Naquele dia o sol tinha feito das suas, os membros do compasso tresandavam a suor a que não era alheio o sol das uvas fermentadas. Uma hora pouco recomendável porque as vozes já se arrastavam e, até, a Cruz chegou a baloiçar perigosamente ficando o Cristo de cabeça para baixo, dificultando o acesso, tendo de me contentar em beijar os pés. Que raio de maneiras em transportar o Senhor, pensei, mas olhando para aquelas faces não seria esperar outra coisa. O rebuliço foi enorme, meu Deus, ataques à mesa, desapareceram as amêndoas, os copinhos de licor esvaziaram-se e o envelope com o dinheiro foi devidamente guardado na pasta do "tesoureiro", que deveria estar tão cheia como o seu bandulho estaria de vinho fino. Não senti a doce e suave frescura da água benta da visita da manhã. Nada que se parecesse. Andou tudo aos trambolhões, a começar pela Cruz. Ainda olhei para o meu Cristo de marfim, majestoso, digno de um rei, que, no meio da mesa, silenciosamente, assistia a toda aquela confusão e ao que andavam a fazer ao seu irmão. Ninguém lhe ligou, nunca ninguém lhe ligou, apenas eu, mas também nunca se importou. Eu sim, fiquei triste por não ter continuado a respirar a suave e doce frescura que a manhã e o rio me tinham oferecido. Que pena, pensei.
3 comentários:
Ficaram as memórias dos aromas, da frescura e da alegria; balsamos para a alma. O resto, o folclore, é típico do nosso povo; talvez seja a sua forma de exorcizar os males que de cima, um "cima" terreno, lhe infligem...
Estimado Professor,
boa Páscoa, para si, e para todos os que fazem ou comentam no 4-R.
E permita-me que aqui lhe coloque à pachorra da sua atenção
PÁSCOA
http://aliastu.blogspot.pt/2012/04/pascoa.html
RESSURREIÇÃO
http://aliastu.blogspot.pt/2010/04/ressurreicao.html
Obrigado. Vou ler. Páscoa Feliz para si e para todos.
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