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quinta-feira, 3 de abril de 2014

Os Lusíadas

Cheguei cedo. Conheço bem a cidade e o local. Ao descer a avenida lembrei-me de pessoas da minha idade, quis recordar os seus nomes mas não consegui. Não interessa, do passado fica pouca coisa, apenas algumas recordações, sentimentos e saudosas emoções.
O esqueleto da zona não sofreu grandes alterações, apenas as carnes, tendões e músculos é que são diferentes, contrariando a velhice, rejuvenesceu, mas com tristeza e saudade de vidas de outrora.  
Cheguei cedo. Fui dar uma volta e beber um café. Na esquina encontrei um. Ainda lá está. Entrei e sentei-me. Olhei por uma janela agora voltada para a enorme rotunda. Em tempos permitia ver a estação, agora não. Olhei para a parede e vi uma enorme fotografia de uma velha locomotiva a vapor. Pensei, deve ser a mesma que daqui me levou para casa há quase meio século. Nesse dia fiz algo que nunca esqueci. Tive de ir a Viseu comprar Os Lusíadas. Ia para o quinto ano e na minha terra não se vendiam livros. Comprar Os Lusíadas foi um verdadeiro ato iniciático. Senti-me muito importante. A partir de agora sou alguém, vou ler e estudar Os Lusíadas. Ouvia, incessantemente, que era muito confuso e extraordinariamente complicado, sobretudo na divisão das orações. Deixá-lo, pensei. Na ânsia de o começar a ler, deu-me para decorar os primeiros versos. Entendia que passaria à condição de erudito assim que chegasse a casa. Assim fiz. Sentado naquele local, junto à janela de um dia belo e quente de setembro, comecei a memorizar, depois de beber um "nescafé". Que estilo! Aos 15 anos, sentado num café a ler Os Lusíadas, um momento inesquecível.

"As armas e os Barões assinalados 
Que da Ocidental praia Lusitana
Por mares nunca de antes navegados
Passaram ainda além da Taprobana, 
Em perigos e guerras esforçados 
Mais do que prometia a força humana, 
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram"

Não foi fácil. Recordo, sobretudo quando tropeçava na Taprobana, que não sabia dizer como devia ser e trocava por Trabopana e coisas semelhantes. Era uma inquietação. Mesmo durante a viagem de comboio, provavelmente puxada pela máquina que estava na foto da parede, memorizei várias vezes, até suspirar de alívio quando consegui dizer Taprobana, os primeiros versos. Que raio de nome o Luís de Camões escolheu. Mas onde ficava a dita Taprobana? Devia ser para os lados da África, adiantei. Ao chegar a casa, no "rápido" que devia andar a pouco mais do que 25Km/ hora, mostrei triunfantemente o primeiro livro que comprei sozinho. - Já sei os primeiros versos. Decorei-os. - Ai sim? Então diz lá. Comecei, mas ao chegar à dita cuja, meti as mãos pelos pés, engasguei-me e disse: - Que chatice. - Espera aí, engano-me sempre. Li novamente e disse: -...Taprobana... Em perigos e guerras esforçados... 
E foi assim que comecei a ler Os Lusíadas há quase cinquenta anos...

3 comentários:

opjj disse...

V.Exª. levou-me ao tempo escolar.Dou mais valor agora a Camões e Fernando Pessoa do que quando era obrigado a fazê-lo.Eram tantas as disciplinas (e a bola pelo meio) que o tempo escasseava.
cumps.

Diogo disse...

Sempre considerei, imodestamente, que tinha uma pequenina queda para a poesia.

De forma que quando frequentei o 5º ano do liceu D. João de Castro, deu-me para escrever um resumo dos Lusíadas, mas não passei de mais de quinze ou vinte estrofes. Só me recordo da primeira:

Os livros e os alunos assinalados
Que do ocidental liceu lusitano
Por matérias nunca de antes estudadas
Passaram além do quarto ano,
E que em trabalhos e testes esforçados
Mais do que prometia a mente humana
Entre doutores retrógrados edificaram
Nova turma, que tanto sublimaram

Massano Cardoso disse...

Opjj e Diogo

:):):)