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quinta-feira, 3 de maio de 2007

“Senhor doutor! Senhor doutor!”

Na sequência da minha última nota, “a mulher do chapéu de chuva”, recordei-me de um outro episódio por causa da problemática levantada a propósito das habilitações do senhor primeiro-ministro. Na sua entrevista televisiva, entre muitos aspectos, registei a explicação para o tratamento de engenheiro: “mero tratamento social”!
Nos finais da década de sessenta, aquando da minha entrada na Universidade, nos meados de Novembro, ensaiei, pela primeira vez, estudar num café. Marrar aqueles calhamaços de anatomia em casa, punha-me a dormir. Escolhi o café Império já que ficava a poucos metros da casa onde habitava. Uma noite, depois do jantar, agarrei no primeiro volume do Testut e desloquei-me ao café. Subi por umas escadas estreitas ao primeiro andar, habitualmente “reservado” aos estudantecos, já que no rés do chão não era permitido ocupar as mesas, e pude escolher à vontade uma, já que estavam todas às moscas. O empregado, passado algum tempo, dirigiu-se-me nos seguintes termos: - O que é que o senhor doutor vai tomar? Fiquei de boca aberta, até porque não estava mais ninguém naquela sala. Pensei: - O homem deve estar maluco. A chamar-me doutor! O que é certo é que repetiu a pergunta e respondi que queria um café. Continuei a pensar, por que raio é que chamaria doutor a um caloiro, que teve o atrevimento de começar a estudar, logo na primeira quinzena de Novembro, desafiando a praxe, já que depois das seis horas não nos era permitido andar na rua. Mas como habitava perto, sentia-me seguro. Só se podia ser praxado na rua e numa correria louca depressa ficava outra vez debaixo de telha.
Ao princípio este tratamento incomodava-me, mas ao fim de quinze dias deixei de ligar e aceitei naturalmente a cortesia social da cidade.
Passados uns anos, andava no quarto ou no quinto ano, já não me recordo, deixei no café Sofia, que há muito tinha substituído o Império, os meus livros, porque tive que ir a casa tratar de uns assuntos. Eis que de repente ouço alguém a gritar numa das ruas mais movimentadas da cidade: - Senhor doutor! Senhor doutor! Posso afiançar que a maioria das pessoas que circulavam na altura aquela artéria pararam, virando-se para o gritador. Até um cão, rafeiro e meio esquálido, que lentamente ia à minha frente, parou, virando-se para a origem do tratamento do “Oh senhor doutor”. Mas depressa retomou a sua marcha lenta, pensando que deveriam estar a chamar um outro colega seu...

8 comentários:

Tavares Moreira disse...

Caro Professor Massano,

O meu Amigo é um grande contador de histórias, sem dúvida.
E noto nas suas narrativas o sabor da autenticidade, de saber apreciar as pessoas e os comportamentos por uma óptica simples, realista e ao mesmo tempo pitoresca.
É mesmo uma delícia ler as suas histórias, acredite.

João Melo disse...

sem duvida dr tavares moreira.este blog é farto em grandes contadores de histórias como o dr pc e a dra susana toscano ( não existem aqui engenheiros pois não ?)..

Suzana Toscano disse...

Não vá o meu amigo sem resposta a esta história tão engraçada. Há poucos anos, estava eu em pleno das minhas "lides políticas", fui comprar carne a um talho onde nunca tinha ido, perto de minha casa.No fim da farta encomenda, diz o homem "Chega para o jantar, sra. dra.?" e eu cheguei a casa a contar que o homem, além de bem humorado, devia ler jornais e devia estar atento às atribulações da política, o risco era se a carne trouxesse a vingança...Uns dias depois a minha filha, na altura ainda estudante de direito, chega a casa a dizer "mãe, tens que ir sempre àquele talho. Ali também sou doutora e não tenho que andar na política como tu!" Pois é,por defeito, é melhor chamar dr., é bom para o negócio e fideliza a clientela!

Margarida Corrêa de Aguiar disse...

Caro Professor Massano Cardoso
Ao ler esta sua história estava como numa sala de cinema, a ver o filme, passo por passo, minuto a minuto, dentro e fora do café, a olhar para cada uma das personagens, sem esquecer o cão. A sua referência ao cão é deliciosa.
E já que estamos em maré de contos, não resisto a contar uma historieta muito engraçada, a propósito dos Drs. e das Dras.
Uma empregada antiga de casa dos meus Pais, que para nós fazia parte da Família, no dia em que conclui a minha licenciatura, ouviu o meu Pai tratar-me - em jeito de graça, claro está - por Dra. Desde então passei a "menina Dra.", menina porque nunca deixaria de o ser, e Dra. porque me tinha tornado, a seu ver, uma pessoa importante!

Bartolomeu disse...

Excelente conto caríssimo prof. e aquele cãozinho, que à sua frente partilhava o passeio, veio mesmo a calhar, imagine se em vez de cão fosse um burro, logo haveria alguem a pôr em evidÊncia o proverbio popular "um burro carregado de livros, é um doutor".
Possivelmente o cãozinho era de raça e foi isso certamente que o fez duvidar se o chamamento lhe seria relativo.
Tal como a Margarida, aproveito para contar uma graça que me sucede com frequência. Devido ao local onde exerço funcções, quem me contacta pela primeira vez, é habito concluir que sou Dr., não o sendo. A maior graça é quando lhes travo o cumprimento, dizendo com a máxima naturalidade: apesar dos inúmeros puxões de orelhas e castigos que sofri em criança, não estudei o suficiente para lá chegar.

Pinho Cardão disse...

Caro Doutor Bartolomeu:
Pa mim, o meu amigo, pelo que conheço dos seus escritos aqui no 4R, é um verdadeiro doutor, não um mero dr., mas um doutor com todas as letras!...
Daqui para diante, irei tratá-lo como devo: Doutor Bartolomeu!....

Pinho Cardão disse...

Escrevi "pa mim"; foi um doutoral lapso, pois queria dizer "para mim"!...

Bartolomeu disse...

:)))))
Caro Doutor Pinho Cardão, não agradeço a benevolência, pelo simples facto de não a merecer.
Por outro lado, se o caríssimo fosse reitor de uma qualquer universidade independente que atribuisse diplomas à qualidade e oportunidade dos comentários... então talvez o convidasse para um jantar... qui ça?
:))))