Realçar a importância da memória é uma perda de tempo. Todos a conhecem, a não ser que já não a tenham! De vez em quando, a minha teima em pregar partidas ao não permitir que recorde os nomes das pessoas, sobretudo quando não as vejo há algum tempo. Ainda por cima tenho que confessar que, desde que me conheço, nunca fui dotado para memorizar nomes. Esta curta reflexão surgiu devido a um episódio que ocorreu há dias. Estava sentado num restaurante, quando, no canto oposto, vislumbrei duas pessoas conhecidas. Cumprimentei-as com um sorriso acompanhado de um aceno de cabeça, mas fiquei bloqueado quanto aos nomes. Fiz um esforço terrível e nada! Ao fim de alguns segundos, graças a associações, lá consegui recordar o nome da mais nova, mas quanto ao senhor não consegui. Sabia que tinha o nome cá dentro, mas não o encontrava. Fiz esforços, recordei-me de conversas, de certos acontecimentos, de vivências e sei lá que mais, mas do nome nada. Onde pararia o raio do nome? Graças às tecnologias, agarrei no telemóvel, liguei-me à internet, coloquei palavras chaves sobre o senhor e passados uns segundos apareceu no écran o seu nome. Uff! Que sensação de alívio! Já pude almoçar mais tranquilamente.
Claro que este episódio obrigou-me a refletir sobre a memória e despertou várias ideias. Uma delas tem a ver com a estranha sensação de que lemos, lemos, e pouco ou nada fica da leitura. Olho para trás, e, na grande maioria dos casos, não consigo recordar dos nomes dos autores, dos títulos dos livros, das cores das capas, dos seus conteúdos, de algumas frases interessantes, chegando ao ponto de os confundir, de os trocar, enfim, uma terrível “amnésia”. Cheguei mesmo a pensar se conseguisse “reter” apenas um por cento do que leio seria uma vantagem do arco da velha. Ninguém tivesse pena de mim. Só queria um por cento, mas nem isso. A outra tem a ver com técnicas de estimulação e de treino da memória, algumas praticadas na escola primária, técnicas primárias que contrastam com técnicas mais sofisticadas, como a arte da mnemónica desenvolvida desde a antiguidade. De repente, lembrei-me de duas obras a este propósito: o livro “O homem que sabia tudo”, cujo autor já não me lembro, que retrata, de forma romanceada, a vida e a obra de Giovanni Pico Della Mirandola. Fiquei surpreendido com o pensamento deste humanista, e seduzido com a sua verdadeira memória de elefante, que chegou a memorizar obras inteiras, facto que lhe dava particular vantagens nos seus debates. A outra foi o “Tratado de Magia”, de Giordano Bruno (deste lembro-me perfeitamente), onde está, também, descrito algumas técnicas que permite reter ideias, o modo de as recordar e associá-las. Que inveja! Como se não bastasse estas recordações, lembrei-me do efeito amnésico do rio Lethes e, como estava a almoçar, associei-me a outro almoço (lembro-me, perfeitamente, de ter comido um ótimo arroz de pato!) em que tinha participado meses antes na cidade de Viana do Castelo. No hotel, situado lá no alto, e cujo nome não me recordo, fiquei de boca aberta perante a tapeçaria de Almada Negreiros a retratar a chegada das hostes romanas à beira do rio Lima. Diz a lenda que a paisagem era de tal modo deslumbrante ao ponto dos soldados se terem recusado a passar para a outra margem, porque julgavam estar perante o famoso rio do esquecimento. À medida que ia lendo, fiz um esforço dos diabos para decorar o nome do comandante. Na altura ainda consegui reter o nome mas, passados estes meses, já não consigo. Do Almada Negreiros lembro-me, assim com da encantadora tapeçaria que relata o episódio em que o comandante atravessa o rio e, da outra margem, começa a chamar os soldados um por um, através do seu nome, provando que não tinha ficado sem memória. Fui pesquisar o nome do comandante e disse: Ah! Pois !Agora já me lembro (depois de ler!) era Décios Junos Brutos!
Para terminar, quero agradecer ao escritor alemão Patrick Suskind, o autor da célebre obra, que todos já ouviram falar, “O Perfume”, que, num pequeno livro (“Um Combate e outras histórias”), com quatro pequenos ensaios, que custou 1,5 euros, foi de uma grande ajuda. Um desses ensaios chama-se “Amnésia in Litteris”, ou outros já me esqueci. Neste ensaio, o autor relata a sua experiência, a sua frustração sobre os esquecimentos, as trocas e as baldrocas provocadas pela “falta de memória”. Fiquei deliciado com a beleza, a franqueza, o humor e a profundidade do autor. Ao mesmo tempo tranquilizou-me, porque, afinal, também “sofro” do mesmo fenómeno ou “doença”. Suskind afirma que, quando lemos um livro, a nossa consciência, ao impregnar-se dos seus conteúdos, modifica-se de tal ordem que é incapaz de fazer uma auto crítica, ou seja separar-se dos efeitos, dos conteúdos, da beleza, da alegria, da tristeza, de todas as vivências e pensamentos dos outros. Afinal somos o que somos e somos aquilo que lemos, mesmo que nos esqueçamos dos seus conteúdos, dos seus autores, dos títulos, das frases mais impressionantes, enfim, praticamente de tudo.
O mais certo é daqui a algum tempo já ter esquecido o nome do ensaio de Suskind, de o trocar com outro autor, de não me recordar desta pequena crónica, mas sinto-me mais confortável pelo facto da minha consciência se ter modificado sem ter tido consciência de tal.
Claro que nunca serei um, como é que ele se chamava? deixa-me cá ver já o escrevi aqui algures: Ah! claro, Décios Junos Brutos!
Claro que este episódio obrigou-me a refletir sobre a memória e despertou várias ideias. Uma delas tem a ver com a estranha sensação de que lemos, lemos, e pouco ou nada fica da leitura. Olho para trás, e, na grande maioria dos casos, não consigo recordar dos nomes dos autores, dos títulos dos livros, das cores das capas, dos seus conteúdos, de algumas frases interessantes, chegando ao ponto de os confundir, de os trocar, enfim, uma terrível “amnésia”. Cheguei mesmo a pensar se conseguisse “reter” apenas um por cento do que leio seria uma vantagem do arco da velha. Ninguém tivesse pena de mim. Só queria um por cento, mas nem isso. A outra tem a ver com técnicas de estimulação e de treino da memória, algumas praticadas na escola primária, técnicas primárias que contrastam com técnicas mais sofisticadas, como a arte da mnemónica desenvolvida desde a antiguidade. De repente, lembrei-me de duas obras a este propósito: o livro “O homem que sabia tudo”, cujo autor já não me lembro, que retrata, de forma romanceada, a vida e a obra de Giovanni Pico Della Mirandola. Fiquei surpreendido com o pensamento deste humanista, e seduzido com a sua verdadeira memória de elefante, que chegou a memorizar obras inteiras, facto que lhe dava particular vantagens nos seus debates. A outra foi o “Tratado de Magia”, de Giordano Bruno (deste lembro-me perfeitamente), onde está, também, descrito algumas técnicas que permite reter ideias, o modo de as recordar e associá-las. Que inveja! Como se não bastasse estas recordações, lembrei-me do efeito amnésico do rio Lethes e, como estava a almoçar, associei-me a outro almoço (lembro-me, perfeitamente, de ter comido um ótimo arroz de pato!) em que tinha participado meses antes na cidade de Viana do Castelo. No hotel, situado lá no alto, e cujo nome não me recordo, fiquei de boca aberta perante a tapeçaria de Almada Negreiros a retratar a chegada das hostes romanas à beira do rio Lima. Diz a lenda que a paisagem era de tal modo deslumbrante ao ponto dos soldados se terem recusado a passar para a outra margem, porque julgavam estar perante o famoso rio do esquecimento. À medida que ia lendo, fiz um esforço dos diabos para decorar o nome do comandante. Na altura ainda consegui reter o nome mas, passados estes meses, já não consigo. Do Almada Negreiros lembro-me, assim com da encantadora tapeçaria que relata o episódio em que o comandante atravessa o rio e, da outra margem, começa a chamar os soldados um por um, através do seu nome, provando que não tinha ficado sem memória. Fui pesquisar o nome do comandante e disse: Ah! Pois !Agora já me lembro (depois de ler!) era Décios Junos Brutos!
Para terminar, quero agradecer ao escritor alemão Patrick Suskind, o autor da célebre obra, que todos já ouviram falar, “O Perfume”, que, num pequeno livro (“Um Combate e outras histórias”), com quatro pequenos ensaios, que custou 1,5 euros, foi de uma grande ajuda. Um desses ensaios chama-se “Amnésia in Litteris”, ou outros já me esqueci. Neste ensaio, o autor relata a sua experiência, a sua frustração sobre os esquecimentos, as trocas e as baldrocas provocadas pela “falta de memória”. Fiquei deliciado com a beleza, a franqueza, o humor e a profundidade do autor. Ao mesmo tempo tranquilizou-me, porque, afinal, também “sofro” do mesmo fenómeno ou “doença”. Suskind afirma que, quando lemos um livro, a nossa consciência, ao impregnar-se dos seus conteúdos, modifica-se de tal ordem que é incapaz de fazer uma auto crítica, ou seja separar-se dos efeitos, dos conteúdos, da beleza, da alegria, da tristeza, de todas as vivências e pensamentos dos outros. Afinal somos o que somos e somos aquilo que lemos, mesmo que nos esqueçamos dos seus conteúdos, dos seus autores, dos títulos, das frases mais impressionantes, enfim, praticamente de tudo.
O mais certo é daqui a algum tempo já ter esquecido o nome do ensaio de Suskind, de o trocar com outro autor, de não me recordar desta pequena crónica, mas sinto-me mais confortável pelo facto da minha consciência se ter modificado sem ter tido consciência de tal.
Claro que nunca serei um, como é que ele se chamava? deixa-me cá ver já o escrevi aqui algures: Ah! claro, Décios Junos Brutos!
5 comentários:
Dá gosto ler, caro Professor Massano Cardoso.
Exactamente, caro jotaC.
Caro Professor:
Fui avivar a memória.
Chamava-se, mais precisamente, Decimus Junius Brutus ou, em português, Décimo Júnio Bruto ( e não Décio...).
Foi Procônsul da Lusitanea.
Caro Pinho Cardão
É uma chatice! Que é quer? Comprei um "décimo" e tive muita sorte em ter tido a terminação. Nada mau. Mas olhe que eu não inventei de todo. Fui ver se encontrava uma fotografia da tapeçaria e acabei por a colocar. E lá está: DECIUS! Às tantas o Almada também já devia sofrer de "amnésia un litteris"... É contagiosa, pelos vistos!
Caro Professor Massano Cardoso
Cada vez tenho mais "brancas"! Volta e meia lembro-me que me esqueço com facilidade de nomes de pessoas e de lugares. Normalmente resulta bem a técnica de percorrer o abecedário. O problema é que às vezes a primeira letra do nome da pessoa que tenho na minha frente para cumprimentar é das últimas. E até lá chegar passa uma eternidade de tempo!
A propósito da memória, recordo muito as memórias fabulosas das minhas Avós que se lembravam de pessoas, acontecimentos e livros de há dezenas de anos. Contavam histórias engraçadíssimas e tinham-nas na memória viva, diziam as minhas Avós, com muita graça, que a velhice também tinha as suas vantagens. A sua memória dos tempos recuados à infância e juventude era, de facto, muito superior à memória de tempos mais recentes!
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