O facto é que em regra passa muito tempo entre o momento em que as coisas começam a acontecer e aquele em que finalmente as reconhecemos ao ponto de lhes dar o nome. Isto acontece com as coisas boas, mas essas tendemos a antecipar, sentimos alegria na decifração dos sinais para não perdermos um segundo da felicidade que antevemos. Já com as coisas más, em que também acontece, o impulso é o de ignorar, desvalorizar, recusar mesmo com aquele gesto de impaciência que diz “isso é impossível, que ideia!”Quando finalmente temos a coragem, ou a inevitabilidade, de lhes pronunciar o nome, já os factos se instalaram e passaram a ser parte da nossa realidade.
É assim com os divórcios, por exemplo, ou as zangas para sempre, anunciam-se subtilmente por gestos de indiferença, depois por palavras ásperas, logo por atitudes cruéis, num crescendo de desamor até que um dia alguém pronuncia a palavra que há muito guiava o comportamento.
Também é assim com as crises, já vimos que sim, a actual teve vários nomes até que alguém a assumiu, preto no branco, é a crise e mais nada, fora as teorias, adeus convenções, ideologias e tal, mas a verdade é que quando o nome soou ela já se tinha instalado em toda a linha. Antes, usávamos a palavra como um esconjuro, não como uma realidade.
Saramago diz, em “As Intermitências da Morte”, que também é assim com a morte, que é muito injusto que as pessoas a considerem traiçoeira porque ela envia vários sinais mas que a pessoa não quer ver, recusa olhá-la até que o médico, ou a evidência, lhe ponham a palavra na boca.
E a guerra, também essa começa muito antes do troar dos canhões, da mobilização ou das vítimas, a guerra começa quando já não é possível evitar usar a palavra e ela passa a ser parte das conversas, o “se” dá lugar ao quando e ao como, e onde. Isto mesmo diz Sandór Marai, no fantástico romance “Divórcio em Buda”, que a guerra começa por estalar num lugar longínquo, invisível, primeiro estala na alma dos seres humanos e, quando se manifesta, as pessoas já se habituaram a ela, repetindo com toda a naturalidade a palavra “guerra”, a mesma que antes não ousavam sequer invocar.
Este reconhecimento insidioso, que nos habitua a conviver com o inaceitável, com o que antes imaginaríamos impossível, é um processo que se aplica a muitas coisas. Ao medo, por exemplo.
É assim com os divórcios, por exemplo, ou as zangas para sempre, anunciam-se subtilmente por gestos de indiferença, depois por palavras ásperas, logo por atitudes cruéis, num crescendo de desamor até que um dia alguém pronuncia a palavra que há muito guiava o comportamento.
Também é assim com as crises, já vimos que sim, a actual teve vários nomes até que alguém a assumiu, preto no branco, é a crise e mais nada, fora as teorias, adeus convenções, ideologias e tal, mas a verdade é que quando o nome soou ela já se tinha instalado em toda a linha. Antes, usávamos a palavra como um esconjuro, não como uma realidade.
Saramago diz, em “As Intermitências da Morte”, que também é assim com a morte, que é muito injusto que as pessoas a considerem traiçoeira porque ela envia vários sinais mas que a pessoa não quer ver, recusa olhá-la até que o médico, ou a evidência, lhe ponham a palavra na boca.
E a guerra, também essa começa muito antes do troar dos canhões, da mobilização ou das vítimas, a guerra começa quando já não é possível evitar usar a palavra e ela passa a ser parte das conversas, o “se” dá lugar ao quando e ao como, e onde. Isto mesmo diz Sandór Marai, no fantástico romance “Divórcio em Buda”, que a guerra começa por estalar num lugar longínquo, invisível, primeiro estala na alma dos seres humanos e, quando se manifesta, as pessoas já se habituaram a ela, repetindo com toda a naturalidade a palavra “guerra”, a mesma que antes não ousavam sequer invocar.
Este reconhecimento insidioso, que nos habitua a conviver com o inaceitável, com o que antes imaginaríamos impossível, é um processo que se aplica a muitas coisas. Ao medo, por exemplo.
4 comentários:
Suzana
O não querermos ver as coisas que estão a acontecer ou que vão acontecer também pode ser explicado por um certo comportamento de auto-defesa, em que não queremos que aquela realidade aconteça ou porque acreditamos que ainda é possível que não aconteça. Mas também temos situações em que fingir não ver a realidade e a sua mais que provável evolução ou estando a vê-la e negá-la se insere em estratégias calculistas e dilatórias em que é perseguido o ganho "pessoal", indevido e não merecido e muitas das vezes com perda colectiva. Na política acontece muito. Há quem diga que tem que ser assim!
É natural que perante a doença grave ou a ameaça da morte se desenvolva o sentimento da esperança de viver. Se não fosse a esperança como se poderia aguentar o sofrimento? Como seria ocupado o tempo? A visão de Saramago é muito "materialista". Não é assim que as coisas se passam!
Muito bem observado, cara Suzana.
O ser humano vai-se habituando, vai abstraindo, vai-se esquecendo, vai-se adaptando, até chegar a um ponto de não retorno.
Alguém dizia que, se esquecemos um direito e não o reclamamos, outro toma para si esse direito. Invertendo-se a situação: quem tinha o direito fica com o dever, quem tinha o dever usurpou o direito.
Assim acontece com o medo, caso não haja reacção inicial. O homem vai-se tornando num farrapo, que propicia cada vez maiores avanços do usurpador.
Todos os textos que por aqui se lêem demonstram, a meu ver, a “muita vida dos seus autores”, além de outras coisas mais, claro.
Apraz-me realçar o último parágrafo deste texto:
“(…) Este reconhecimento insidioso, que nos habitua a conviver com o inaceitável, com o que antes imaginaríamos impossível, é um processo que se aplica a muitas coisas. Ao medo, por exemplo.”
O que se lê será, provavelmente, uma verdade universal. Como exemplo, foi o medo que sempre aniquilou a vontade das nações, propiciando as condições aos ditadores para vingarem e imporem as suas políticas, mesmo contra a vontade das maiorias que naqueles momentos sempre se acobardam para não perderem privilégios, e o que resta, a dignidade, essa também se cala ou se vende...
Por cá começam a desenhar-se cenários de medos estranhos (pois é suposto vivermos em democracia !?), deveras preocupantes: o medo de denunciar dando a cara, o medo de emitir opinião contrária, são factores que estão a contribuir para este faz-de-conta que está tudo bem. E se calhar, até está, pois desde sempre, aqueles que contribuíram para a mudança, para a evolução da sociedade e das coisas, estiveram em minoria…Portanto, alguns de nós, vivemos num rebuço permanente…
Diz o caro Drº Pinho Cardão:
"...Alguém dizia que, se esquecemos um direito e não o reclamamos, outro toma para si esse direito. Invertendo-se a situação: quem tinha o direito fica com o dever, quem tinha o dever usurpou o direito..."
É muito verdade.
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