Envelhecimento e perda de memória andam, frequentemente, de mãos dadas e, por vezes, abraçam-se tão intimamente que nem dão conta de que fazem parte do mundo. Neste caso, talvez seja uma felicidade para alguns, porque passam a ignorar as injustiças que os vitimaram. Em contraponto, também não é menos verdadeiro que uma vida sem memórias pode ser pior que a própria morte. Mas são muitos, aqueles que se esforçam por recordar imagens e vivências frescas, leitosas, carnudas e nutritivas que um dia os seduziram para a vida! Passam a descascar as inúmeras camadas concêntricas, velhas, secas e acastanhadas até atingirem o núcleo da recordação dos momentos felizes em que o mundo prometia felicidade a rodos.
Essa felicidade, por vezes, desaparece entre os dedos e com ela vai a própria filha que, ansiosa por se libertar do infortúnio que a atingiu, sem saber porquê, e sem compreender a finalidade do mesmo, pede a morte. E a mãe ajudou-a. Agora está a ser julgada por ter auxiliado o suicídio da filha. Há muito que sofria de uma doença incapacitante, desde os 14 anos, que a obrigava a permanecer, permanentemente, acamada, necessitando de auxílio para se alimentar.
Pedia a morte. A mãe recusava sistematicamente. Os anos passavam e os pedidos multiplicavam-se. Um dia entregou-lhe duas seringas com morfina que a doente injetou em si própria. Nada! Então a mãe adicionou comprimidos de hipnóticos e antidepressivos através da sonda nasogástrica. Nada! Uma noite e um dia. E nada! Na madrugada seguinte mais algumas doses de morfina. Nada! Socorreu-se então de uma organização que lhe explicou o que deveria fazer. Mais comprimidos. Agora sim. Ao nascer do dia acabou por se libertar.
A mãe está a ser julgada. Não chegou a ser acusada de homicídio, porque os exames toxicológicos não permitiram excluir se Bridget morreu por causa da auto aplicação da morfina ou pelos comprimidos. O acusador teceu elogios quanto ao caráter e devoção da mãe, mas logo a seguir declarou que não lhe competia fazer apreciações de ordem moral. O seu objetivo é saber se houve ou não violação da lei. Como é que a mãe terá ouvido as acusações? Como é que reagirá ao veredicto final? Sentirá vergonha? Arrependimento? Constrangimento de alguma espécie? Importar-se-á com as críticas de muitos? Sentirá algum conforto com a compreensão de outros? Às tantas, não! Imagino-a num plano inatingível a qualquer um de nós, previsivelmente, indiferente às deambulações jurídicas e acusações morais que muitos se apressarão a proferir. Os tribunais poderão reportar, eventualmente, que a sua atitude terá violado a lei, com a perspetiva de avisar os outros, ou, melhor, as outras, de que não poderão fazer aquilo, como se os outros ou as outras ouvissem tão sábias decisões. Mas a sociedade sentir-se-á mais aliviada, sem sombra de dúvida. Estará cumprido o ritual da aplicação da lei. Quanto às acusações de ordem moral, a mãe nem deverá reagir, talvez seja levada, mais uma vez, a questionar o porquê e quais as vantagens do sofrimento da filha e do seu. E por mais explicações que possa ouvir, verá sempre nelas algo de inexplicável e de injustiça. Talvez lhe reste a compensação de poder ainda descascar as camadas concêntricas, velhas, secas e acastanhadas que rodeiam a memória de outros tempos em que o mundo prometia felicidade a rodos, até que a sua memória se apague e se apague da memória dos outros.
Tinha escrito esta pequena crónica há alguns dias, mas entendi não a publicar. Pensei: - Vou esperar um pouco para ver o desfecho. Hoje, casualmente, acabo de tomar conhecimento que a acusação do Ministério Público foi duramente criticada pelo juiz. Os comentários proferidos foram muito violentos por ter levado ao banco dos réus a mãe de Bridget. O júri absolveu a arguida e o juiz elogiou a decisão. Eu também aplaudo e, sobretudo, sinto um alívio. Afinal o “bom senso, a decência e humanidade” prevaleceram. A mãe pode agora desfrutar livremente as belas recordações de antanho.
Essa felicidade, por vezes, desaparece entre os dedos e com ela vai a própria filha que, ansiosa por se libertar do infortúnio que a atingiu, sem saber porquê, e sem compreender a finalidade do mesmo, pede a morte. E a mãe ajudou-a. Agora está a ser julgada por ter auxiliado o suicídio da filha. Há muito que sofria de uma doença incapacitante, desde os 14 anos, que a obrigava a permanecer, permanentemente, acamada, necessitando de auxílio para se alimentar.
Pedia a morte. A mãe recusava sistematicamente. Os anos passavam e os pedidos multiplicavam-se. Um dia entregou-lhe duas seringas com morfina que a doente injetou em si própria. Nada! Então a mãe adicionou comprimidos de hipnóticos e antidepressivos através da sonda nasogástrica. Nada! Uma noite e um dia. E nada! Na madrugada seguinte mais algumas doses de morfina. Nada! Socorreu-se então de uma organização que lhe explicou o que deveria fazer. Mais comprimidos. Agora sim. Ao nascer do dia acabou por se libertar.
A mãe está a ser julgada. Não chegou a ser acusada de homicídio, porque os exames toxicológicos não permitiram excluir se Bridget morreu por causa da auto aplicação da morfina ou pelos comprimidos. O acusador teceu elogios quanto ao caráter e devoção da mãe, mas logo a seguir declarou que não lhe competia fazer apreciações de ordem moral. O seu objetivo é saber se houve ou não violação da lei. Como é que a mãe terá ouvido as acusações? Como é que reagirá ao veredicto final? Sentirá vergonha? Arrependimento? Constrangimento de alguma espécie? Importar-se-á com as críticas de muitos? Sentirá algum conforto com a compreensão de outros? Às tantas, não! Imagino-a num plano inatingível a qualquer um de nós, previsivelmente, indiferente às deambulações jurídicas e acusações morais que muitos se apressarão a proferir. Os tribunais poderão reportar, eventualmente, que a sua atitude terá violado a lei, com a perspetiva de avisar os outros, ou, melhor, as outras, de que não poderão fazer aquilo, como se os outros ou as outras ouvissem tão sábias decisões. Mas a sociedade sentir-se-á mais aliviada, sem sombra de dúvida. Estará cumprido o ritual da aplicação da lei. Quanto às acusações de ordem moral, a mãe nem deverá reagir, talvez seja levada, mais uma vez, a questionar o porquê e quais as vantagens do sofrimento da filha e do seu. E por mais explicações que possa ouvir, verá sempre nelas algo de inexplicável e de injustiça. Talvez lhe reste a compensação de poder ainda descascar as camadas concêntricas, velhas, secas e acastanhadas que rodeiam a memória de outros tempos em que o mundo prometia felicidade a rodos, até que a sua memória se apague e se apague da memória dos outros.
Tinha escrito esta pequena crónica há alguns dias, mas entendi não a publicar. Pensei: - Vou esperar um pouco para ver o desfecho. Hoje, casualmente, acabo de tomar conhecimento que a acusação do Ministério Público foi duramente criticada pelo juiz. Os comentários proferidos foram muito violentos por ter levado ao banco dos réus a mãe de Bridget. O júri absolveu a arguida e o juiz elogiou a decisão. Eu também aplaudo e, sobretudo, sinto um alívio. Afinal o “bom senso, a decência e humanidade” prevaleceram. A mãe pode agora desfrutar livremente as belas recordações de antanho.
3 comentários:
Caro Professor
Há situações na vida do ser humano que o que tem que ditar o seu comportamento tem que ser mesmo a "sua moral" o que ele "sabe" que tem que ser feito! Pois, as leis, as morais vigentes, as éticas, tudo muda com maior ou menor velocidade, tudo muda com os tempos e o "inferno são os outros"...
Procurei na net algo sobre o caso da Bridget. Não encontrei. Trata-se de nome fictício?
Fiquei com curiosidade. De que enfermidade sofreu durante tantos anos ao ponto de necessitar de auxílio para se alimentar mas que ainda teve forças para se injectar? Quantos anos tinha? Vou continuar a pesquisar.
Estes são casos tão delicados, tão difíceis que nós, os leigos, não poderemos compreender o verdadeiro quadro clínico e nem poderemos compreender, tão pouco, o sofrimento dessa mãe (e da filha) na sua plenitude. A decisão do júri vai decerto suscitar muita controvérsia... como não poderá deixar de ser... e essa senhora vai, de certo, ser olhada de soslaio por muitos. Esperemos que, não obstante, encontre um canto amigável e de paz, onde se possa recolher nos momentos difíceis que ainda irá viver. A vida dessa senhora alterou-se para sempre...
Encontrei a notícia. Que sofrimento!
Enviar um comentário