Hoje, ninguém anda de descalço, a não ser em determinadas circunstâncias ditadas por imperativos mais do que óbvios. Os pés, sobretudo os “pés portugueses”, têm sido muito mal tratados ao longo dos tempos. Os desgraçados, que estão na extremidade do corpo, têm que carregar com o peso do dono, muitas vezes mais do que exagerado, além de vários acessórios e cargas. Por outro lado, a escolha de calçado apropriado ao conforto e saúde das “patinhas” é relegado para um plano secundário, ao ser dada prioridade a aspetos mais estéticos do que funcionais, chegando a provocar deformações e problemas a nível da coluna.
Atendendo ao envelhecimento da população portuguesa e às inúmeras patologias com reflexos na circulação dos pés tem de haver mais atenção e cuidado para evitar complicações, algumas mesmo graves, que chegam, em certas circunstâncias, a amputações. Acontece que em termos práticos só agora é que se começa a avizinhar alguma preocupação neste sentido por parte das autoridades de saúde. Mas é muito importante que seja dada mais atenção ao conforto e saúde dos pés, mesmo nos que não sofram de patologias. Andam muitos preocupados com a estética, nomeadamente das “dentuças”, mas esquecem-se de tão importantes apêndices, base da nossa sustentação, e que, pelo facto de não andarem expostos, não são bem tratados.
Portugal pautou-se durante muito tempo por um dos mais interessantes fenómenos, o “pé descalço”, que levou muito tempo a ser combatido.
Foi em janeiro de 1928 que a Liga Portuguesa de Profilaxia Social “iniciou a campanha contra o indecoroso, inestético e anti-higiénico hábito do pé descalço”.
“O pé descalço – Uma vergonha nacional que urge extinguir”, publicado em 1956, faz uma interessante análise deste fenómeno. Adquiri-o há dias num alfarrabista no Porto.
Lembro-me muito bem, nos meus tempos de criança, de ver inúmeras pessoas que andavam descalças quer fosse verão ou inverno. O perigo de contrair o tétano era uma realidade, além de outras infeções. Apesar de muitas pessoas morrerem, mesmo assim, teimosamente, continuavam com aquela prática, ainda na década de cinquenta.
No Porto, o governador-civil proibiu o hábito do “pé descalço” em 1928, e, no mesmo ano, Lisboa seguiu o exemplo. Em Coimbra, na sequência de uma palestra proferida pelo diretor da liga, em 1933, um tio dos assistentes, Nicolau da Fonseca, que então dirigia a Agência do Banco de Portugal, encabeçou a campanha publicando vários artigos no jornal Gazeta de Coimbra, motivando o meio culto da cidade para o despertar deste assunto, e que veio a culminar na proibição a partir de 1 de Maio de 1934.
Uma coisa é proibir, outra é acatar as ordens. Tudo aponta para que os portugueses, à exceção dos alentejanos, que protegiam os pés, fosse o único povo da Europa a andar com solas naturais. Os relatos de estrangeiros atribuíam-nos epítetos de selvagens. Nem os marroquinos andavam descalços. O argumento da pobreza não era suficiente para explicar este fenómeno. De facto, em 14 de Fevereiro de 1904, o Professor Daniel de Matos proferiu, em Coimbra, uma conferência intitulada “A luta contra o pé descalço”. A certo trecho fez a seguinte afirmação: “O nosso povo mais depressa deixa de comprar um par de sapatos do que deixa de ter um cordão, anel, brinco, cadeia ou outro objeto de adorno para seu uso”.
Cheguei a ver mulheres com arcadas de ouro a levarem cestos à cabeça com os tamancos ou sandálias em cima, ou até botas presas pelos atilhos a baloiçarem como se fossem duas grandes orelhas!
Alguns relatos de julgamentos publicados na imprensa da época são muito curiosos como o seguinte que passo a transcrever: “A senhora Maria Joaquina da Silva Teixeira, que tem 29 anos e reside no largo de Santa Marinha, em Gaia, foi ontem responder ao Tribunal de Policia – por, no dia 30 de novembro do ano passado (1954), ter sido encontrada descalça numa das ruas da cidade.
- Era só um pé, Sr. Dr. Juiz. - E porquê? – Perguntou o Sr. Dr. António Quintela.
A ré alega que andava doente do pé que trazia descalço. Tem duas feridas. E, para comprovar a acusação, levanta o pé doente – mostrando-o ao magistrado. Este ergue-se do seu lugar, olha – e comenta: - O que vejo é que está sujo, pelo menos... E depois: - Mas, se tem o pé doente com alguns ferimentos, isso é mais uma razão para andar calçada. Esta medida é para vossa defesa!
A certa altura, apareceu uma testemunha, uma outra mulher: - Eu ia com a ré. E também fui autuada. Venho cá responder terça-feira... - Pois então, espere pela sua vez...
Claro que a Maria Joaquina acabou por ser condenada na multa (que é de 16$50) e no mínimo do imposto de justiça (que é de 50$00).”
Hoje, os pés, felizmente, não andam descalços, o pior é a outra “extremidade”, onde se aloja o “juizinho”, e, vendo o que circula por aí, também anda “descalça”, descalça de ideias, descalça de valores e descalça de princípios. No fundo, passámos de um povo “pé descalço” a um povo de “cabeça descalça”...
É a altura de começarmos uma campanha “contra o indecoroso, inestético e anti-higiénico hábito de insultar e julgar na praça pública”.
“Uma vergonha nacional que urge extinguir”.
Atendendo ao envelhecimento da população portuguesa e às inúmeras patologias com reflexos na circulação dos pés tem de haver mais atenção e cuidado para evitar complicações, algumas mesmo graves, que chegam, em certas circunstâncias, a amputações. Acontece que em termos práticos só agora é que se começa a avizinhar alguma preocupação neste sentido por parte das autoridades de saúde. Mas é muito importante que seja dada mais atenção ao conforto e saúde dos pés, mesmo nos que não sofram de patologias. Andam muitos preocupados com a estética, nomeadamente das “dentuças”, mas esquecem-se de tão importantes apêndices, base da nossa sustentação, e que, pelo facto de não andarem expostos, não são bem tratados.
Portugal pautou-se durante muito tempo por um dos mais interessantes fenómenos, o “pé descalço”, que levou muito tempo a ser combatido.
Foi em janeiro de 1928 que a Liga Portuguesa de Profilaxia Social “iniciou a campanha contra o indecoroso, inestético e anti-higiénico hábito do pé descalço”.
“O pé descalço – Uma vergonha nacional que urge extinguir”, publicado em 1956, faz uma interessante análise deste fenómeno. Adquiri-o há dias num alfarrabista no Porto.
Lembro-me muito bem, nos meus tempos de criança, de ver inúmeras pessoas que andavam descalças quer fosse verão ou inverno. O perigo de contrair o tétano era uma realidade, além de outras infeções. Apesar de muitas pessoas morrerem, mesmo assim, teimosamente, continuavam com aquela prática, ainda na década de cinquenta.
No Porto, o governador-civil proibiu o hábito do “pé descalço” em 1928, e, no mesmo ano, Lisboa seguiu o exemplo. Em Coimbra, na sequência de uma palestra proferida pelo diretor da liga, em 1933, um tio dos assistentes, Nicolau da Fonseca, que então dirigia a Agência do Banco de Portugal, encabeçou a campanha publicando vários artigos no jornal Gazeta de Coimbra, motivando o meio culto da cidade para o despertar deste assunto, e que veio a culminar na proibição a partir de 1 de Maio de 1934.
Uma coisa é proibir, outra é acatar as ordens. Tudo aponta para que os portugueses, à exceção dos alentejanos, que protegiam os pés, fosse o único povo da Europa a andar com solas naturais. Os relatos de estrangeiros atribuíam-nos epítetos de selvagens. Nem os marroquinos andavam descalços. O argumento da pobreza não era suficiente para explicar este fenómeno. De facto, em 14 de Fevereiro de 1904, o Professor Daniel de Matos proferiu, em Coimbra, uma conferência intitulada “A luta contra o pé descalço”. A certo trecho fez a seguinte afirmação: “O nosso povo mais depressa deixa de comprar um par de sapatos do que deixa de ter um cordão, anel, brinco, cadeia ou outro objeto de adorno para seu uso”.
Cheguei a ver mulheres com arcadas de ouro a levarem cestos à cabeça com os tamancos ou sandálias em cima, ou até botas presas pelos atilhos a baloiçarem como se fossem duas grandes orelhas!
Alguns relatos de julgamentos publicados na imprensa da época são muito curiosos como o seguinte que passo a transcrever: “A senhora Maria Joaquina da Silva Teixeira, que tem 29 anos e reside no largo de Santa Marinha, em Gaia, foi ontem responder ao Tribunal de Policia – por, no dia 30 de novembro do ano passado (1954), ter sido encontrada descalça numa das ruas da cidade.
- Era só um pé, Sr. Dr. Juiz. - E porquê? – Perguntou o Sr. Dr. António Quintela.
A ré alega que andava doente do pé que trazia descalço. Tem duas feridas. E, para comprovar a acusação, levanta o pé doente – mostrando-o ao magistrado. Este ergue-se do seu lugar, olha – e comenta: - O que vejo é que está sujo, pelo menos... E depois: - Mas, se tem o pé doente com alguns ferimentos, isso é mais uma razão para andar calçada. Esta medida é para vossa defesa!
A certa altura, apareceu uma testemunha, uma outra mulher: - Eu ia com a ré. E também fui autuada. Venho cá responder terça-feira... - Pois então, espere pela sua vez...
Claro que a Maria Joaquina acabou por ser condenada na multa (que é de 16$50) e no mínimo do imposto de justiça (que é de 50$00).”
Hoje, os pés, felizmente, não andam descalços, o pior é a outra “extremidade”, onde se aloja o “juizinho”, e, vendo o que circula por aí, também anda “descalça”, descalça de ideias, descalça de valores e descalça de princípios. No fundo, passámos de um povo “pé descalço” a um povo de “cabeça descalça”...
É a altura de começarmos uma campanha “contra o indecoroso, inestético e anti-higiénico hábito de insultar e julgar na praça pública”.
“Uma vergonha nacional que urge extinguir”.
6 comentários:
Aqui está um assunto que eu desconhecia (mais um!...) – a lei do pé descalço!
Um “mimo” de texto... se me permite!
Meu caro Professor, temo que esse seu último apelo está condenado a ficar no domínio dos desejos.
Ele há coisa mais desejada pelo bom povo do que o "indecoroso, inestético e anti-higiénico hábito de insultar e julgar na praça pública"?
Não há Constituição, lei, decreto-lei, decreto, portaria, postura ou despacho capaz de travar este gosto colectivo pelo circo romano em que este País se transformou.
Nem magistrado que olhe para este mal como infracção a punir...
Essas suas idas ao alfarrabista são uma mina de ouro para o 4r, as coisas que ficamos a saber! Uma lei contra os pés descalços deve ter sido uma revolução, sobretudo acompanhada de multas em vez de ser com o respectivo apoio financeiro para a compra dos sapatinhos. Abriu novos mercados e combateu doenças mas teve esse efeito colateral de que fala, passou o descalço para o miolo e aí, embora seja fácil detectar as falhas na apresentação, já é mais difícil de impor os mínimos pela força da lei e combater os maus costumes em nome do progresso civilizacional!
Muito bom, muito bom, meu estimado amigo, Professor Massano Cardoso.
Tal como no caso da senhora Maria Joaquina da Silva Teixeira, a justificação para falta de valores, está numa "doença" que tem vindo a contagiar vertiginosamente, sendo já muito poucos aqueles que lhe conseguem escapar.
Mas voltando ao assunto dos pés sem calçado... devo confessar-lhe que adoro a sensação do contacto com o solo através dos pés.
Quando freso a minha terra e o chão fica fofo, não resisto a descalçar-me e andar por ali sentindo a maciez e envolvência da terra natural.
Além de que, acredito piamente no efeito da força regeneradora que brota da terra, aquilo a que se chama a energia telúrica.
Andar descalço na terra humida, é um prazer inigualável.
Senhor Professor:
Como sempre, os seus escritos são um ensinamento, por isso é professor.
Aprendi hoje que, neste Portugal de "pé descalço" houve uma lei a proibir os ditos. E mais, que os Alentejanos eram os únicos a cobrir os pés. Sou um alentejano de 65 anos e, na escola primária, seguramente 75% dos meus condiscípulos, andavam de pé descalço. Ainda hoje, ou melhor, hoje, mais do que nunca, fico confrangido ao ver essa realidade nas fotos da classe, que ainda conservo. Não consigo deixar de proferir um "como foi possível?" Devo dizer, porém que como alentejano veterano, na realidade só me lembro de ver "pé descalço" nas crianças e adolescentes, manifesto evidente de miséria. No estabelecimento de prioridades, sacrificavam-se os mais fracos ou, talvez, os que menos contribuíam para a receita do orçamento familiar. Coisas dos tempos, imperativos da miséria. O alentejano adulto, homens e mulheres, não andavam descalços (pelo menos em tempos que eu me lembre) tinham os pés protegidos nem que fosse por calçado velho e cambado, mas protegidos. Era impensável um adulto activo deslocar-se para o trabalho ou na sua vida social, sem estar devidamente calçado. Mas não tinham ouro.
De qualquer modo, quero aqui deixar expressa minha admiração por esta gente sacrificada que, ao arrepio de todos os epítetos de que tem sido e é vítima, se tem sabido manter digna na sua persistente desgraça.
Para finalizar, cito o que um grande homem, MIGUEL TORGA,disse do povo alentejano:
...É preciso ter uma grande dignidade humana, uma certeza em si muito profunda, para usar uma casaca de pele de ovelha com o garbo dum embaixador...
Caro Professor Massano Cardoso:
O meu pai, quando calhava falarmos sobre o antigamente, dizia-me que nas aldeias do norte só os rapazes mais remediados calçavam o primeiro par de sapatos ou botas antes da inspecção militar, outros pela primeira vez só nesse dia e, outros ainda, os mais miseráveis quando incorporados no exército, antes tinham ido à inspecção com socas de madeira, calçado típico do Norte. Enfim, era a suprema miséria!
A Lei do Pé Descalço teve aplicação efectiva nas cidades, já nas aldeias não era aplicada e compreende-se a razão.
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