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domingo, 17 de janeiro de 2010

Síndrome de Van Gogh

Ao acordar frente a uma manhã alfombrada de branco, e envolta numa atmosfera cinzenta, ao ponto de querer apagar as cores quentes dos edifícios e veículos, senti uma sensação de beleza estonteante como se tivesse acabado de pintar um quadro impressionista ou ter fugido do mesmo para melhor o contemplar. Uma experiência quase stendaliana, a querer lembrar a síndrome que comporta o nome de genial escritor, brilhantemente descrita em certas pessoas que, ao visitarem Florença, ficam esmagadas com tanta e contínua beleza, ao ponto de o cérebro, confuso e inebriado, deixar de saber quem é e onde está. Um bom pretexto para passar o dia livre no museu Van Gogh. Obras inesquecíveis. Não vi aquela em que o consagrado pintor se auto retrata depois de ter cortado a parte inferior da orelha esquerda, enviada, na antevéspera do Natal, a uma prostituta que, entretanto, morre. Sempre ouvi dizer que, num ato de loucura, o artista se automutilou. Este comportamento deu origem a uma síndrome com o seu nome, síndrome de Van Gogh.
Há um equivalente a esta síndrome denominada de Munchausen, do famoso barão do mesmo nome que contava as aventuras mais mirabolantes e inexequíveis. Recordo ter diagnosticado um caso destes há muitos anos. Um homem de meia-idade tinha passado por vários hospitais e sido submetido a múltiplas intervenções cirúrgicas exploratórias que nunca revelaram nada de especial. O abdómen era um verdadeiro mapa de estradas, retalhado, revelando os percursos percorridos com o propósito de encontrar um destino. Face a tão inusitada história, com muita paciência e conversa, aliadas aos pedidos de vigilância aos enfermeiros, acabei por descobrir que, desta vez, as hemorragias retais, e a anemia subsequente, eram devidas à introdução no reto de pequenos objetos de vidro cortante. O doente estava ansioso para que o operassem mais uma vez a fim de lhe descobrirem a origem das hemorragias.
Afirmam os entendidos que a automutilação de Van Gogh traduz um quadro de perturbação mental. É bem possível. Mas também correm outras versões. O seu companheiro, Paul Gauguin, que não era flor que se cheirasse, numa altercação com o amigo, que deveria estar a empunhar uma lâmina de barbear, desferiu-lhe um corte cirúrgico com a sua espada. Ambos se calaram. Van Gogh de vergonha e Gauguin de culpa. No ato, Van Gogh sentiu uma dor na orelha esquerda e ao olhar para a mão ensanguentada terá dito: - Onde está a minha orelha? Apanhou-a do chão e ao dirigir-se a Gauguin, paralisado, disse: - Estás calado. Eu também vou ficar. Foi a última vez que estiveram juntos.
Na altura em que fiz o diagnóstico de síndroma de Munchausen, li vários textos sobre o assunto. De facto não me recordo de as orelhas serem alvo de automutilações. Às tantas as vítimas nem se devem lembrar delas.
A síndrome de Van Gogh, face a esta análise, deveria ser revista. O seu alcance deixaria de ser sinónimo de automutilação e deveria passar a ser sinal de uma “mutilação silenciosa” provocada por amigos, no calor de uma discussão, em que ambos ficam calados, um por vergonha, o outro por culpa.
A medicina necessita de construir síndromes. É através de sinais e de sintomas que consegue criar e personalizar certas entidades e comportamentos. Habitualmente usa epónimos dos autores que estiveram na sua génese. Outras vezes socorre-se dos locais, da arte, da poesia, e da literatura. Uma forma elegante de ajudar a compreender e interpretar certos fenómenos.

6 comentários:

Catarina disse...

Esplêndido texto.
Conhecia o relacionamento de amizade entre Van Gogh e Gauguin e a estória da orelha mutilada! Só desconhecia a versão segundo a qual Gauguin teria sido o causador da orelha perdida!

Spiriv disse...

As estórias que o Prof Massano aqui não nos conta! A tese segundo a qual a orelha teria sido cortada por Gaugin não está cintificamente comprovada. É uma tese.Parece não haver evidências sérias sobre isto. Que a orelha foi entregue pelo próprio Van Gogh a uma prostituta parece não sofrer grande contestação. E entrega da orelha à prostituta relevará mais da sua sempre estranha relação do pintor com a sua sexualidade. Tratava-se de um bipolar, sofrendo períodos de grande depressão, terminando com o suicídio.

Spiriv disse...

Corrigindo: cientificamente

Bartolomeu disse...

http://www.youtube.com/watch?v=Gi_P8XwrSCU
Uma outra syndrome, poderá caracterizar uma doença social que afecta um individuo e que resulta no reconhecimento do seu "valor", só após a sua morte.
Vincent Van Gogh, foi vítima tambem dessa.
Bom, em Espanha, quando um toureiro execcuta uma boa lide, é autorizado a cortar uma ou as duas orelhas do touro.
Quem sabe essa prostituta, mereceu a orelha do Holandês?!

Suzana Toscano disse...

Também gosto dessa versão que envolve Gaugin e de que o assunto teria ficado entre os dois. O símbolo ficou para a posteridade, ilustrando o nome de uma doença e a verdade do que se passou ficou em segredo, como se calhar acontece com grande parte das doenças mentais e dos seus mistérios profundos, apesar do que se tem progredido na sua compreensão e interpretação.

Spiriv disse...

Como se isto fosse uma questão de gosto! Ou como se a realidade correspondesse aos nossos desejos...