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quinta-feira, 8 de setembro de 2005

A identidade

Uma das coisas que mais me impressionou nas reportagens sobre a tragédia de Nova Orleães foi a terrível angústia das pessoas a dizerem às câmaras que as filmavam na sua desgraça - "Nós não vivíamos assim", "Nós não tínhamos este aspecto" "Nós precisamos de tomar um banho, não vivemos assim sujos", como se não pudessem encarar a perda de identidade. Sem as suas coisas, fora dos seus bairros, sem ninguém para saber "como eram dantes", as pessoas sentem uma anulação insuportável, passam a ser "refugiados" ou "acolhidos no superdome" ou outro grande grupo em que cada um se perdeu de tudo o que era, muitas vezes sem saber se voltará a sê-lo.
Virgílo Ferreira, em "Em nome da terra", descreve assim este sentimento, através de um homem que vive num lar os seus últimos anos de vida:
"E havia a estranheza do mundo e eu não ter nele significação. É o mais terrível, Mónica, a gente é que não pensa. Ter a nossa significação garantida nos outros, nas coisas. (...) De repente foi assim. Perdi a validade como uma nota que já não tem circulação. Então desesperadamente quis ter o meu lugar no mundo. Não o tinha mesmo em mim porque não o tinha no mundo. E achei-me desprezível(...) Ser é ser reconhecido."

4 comentários:

josé disse...

O que escreveu, é de uma pungência aterradora. E revela o problema maior da solidão da velhice.
Dantes, as casas públicas que acolhiam idosos chamavam-se "caridades" e eram da Misericórdia que aliás é um termo algo religioso e relacionado com uma das virtudes teologais, a Caridade, precisamente.

Quem está só, por força das circunstâncias, precisa de ajuda, por suposto.
É na qualidade dessa a juda que se pode ver, também, o desenvolvimento de um povo.

josé disse...

Noutra vertente, mais demarcada da solidão individual que falei, situa-se o desenraizamento individual.

Para os comunistas de antanho, a falta de uma luz que os guie, como dantes acontecia com a URSS, é um drama nada negligenciável.

Perante a evidência da falência de um sistema, muitos, entre os quais se incluem os garbosos comunistas portugueses que estão aí vivinhos da silva, recusam aceitar essa evidência e as consequências que necessariamente lhes trariam.
Daí que ficcionem uma fantasia e se divirtam a lembrar entre eles, em conciliábulos e cenáculos que "o comunismo não morreu" e que o capitalismo não é o fim da história.

COmpreendo muito bem, segundo a perspectiva que apontou. Deve ser terrível, ficar despojado de crenças que se tinham como seguras, quando as bases de sustentação das mesmas, ruiram fragorosamente.

Virus disse...

Quanto à solidão apenas posso dizer que estar só é bom...quando é por opção!

Relativamente à tragédia de Nova Orleães, e à perca de identidade de uma sociedade, a verdade é que não importa se somos de um país avançado do ponto de vista civilizacional, ou se somos de um país do "quarto mundo" a verdade é que não deixamos de ser animais, tais como os outros. Todas as sociedades têm de ter as suas necessidades mais básicas satisfeitas para poderem funcionar enquanto sociedades, caso contrário tudo se desmorona como um castelo de cartas ao vento...e aqui foi o que aconteceu!
As necessidades básicas de uma sociedade são as necessidades básicas da sua população, logo do homem, logo do animal, e quais são as necessidades básicas de um animal qualquer? São duas:
- Comida
- Abrigo

E foram estas duas que faltaram de um momento para o outro nos locais atingidos pelo "Katrina". Faltando estas tudo o que é de mais básico nos animais vem ao de cima, na procura da satisfação dessas necessidades...e ali não foi excepção...como não o é em nenhum outro lugar neste planeta.

A sua identidade, a sua civilização, a sua cultura, a sua alegria e tudo o resto...foi varrido pelas águas e pelo vento, como dizia o SMC no seu texto, de forma completamente indiferente pela natureza.

E esse é um dos maiores dramas da sociedade que nós construímos, é que sem as nossas coisinhas nós não somos nada, não temos qualquer identidade, nem perante nós e sobretudo perante os outros...porquê? Porque nós não temos as nossas coisinhas para utilizar em função da nossa vida... nós temos a nossa vida em função das nossas coisinhas...

Suzana Toscano disse...

Caro Virus, a comida e o abrigo são as necessidades básicas para um ser se manter vivo, mas para viver é preciso mais do que isso, é precisa a tal identidade, por mínima que seja. E não se confunde com a escolha de viver só, essa opção já resulta de uma integração social ou seja, já implica a existência de uma alternativa. Veja que na Grécia Antiga (salvo erro)a punição mais grave, semelhante à pena de morte, era a condenação ao ostracismo, a morte civil ou a perda de identidade... "Deixar de ser" é muito mais do que deixar de ter as suas coisinhas,essas são apenas a referência imediata. A desorganização social, a massificação súbita, a desordem ou a subversão de valores trazem dramas mais profundos e duradouros, que persitem muito para além das notícias da fome ou da falta de abrigo. Como José refere muito a propósito, este mesmo drama pode surgir em profundas alterações sociais como as revoluções, a guerra ou o desmoronar de ideais.