Falida a engenharia financeira, entrou-se agora de peito aberto no campo da engenharia linguística, com a mesma temeridade e inconsciência com que se propagou a outra. Basta ouvir, mesmo distraidamente, os debates e opiniões a propósito das hipotéticas medidas a tomar para resolver a quadratura do círculo orçamental. Ainda há pouco ouvi, e tem sido recorrente, um analista dizer que não é possível aumentar mais os impostos e por isso o remédio seria reduzir os salários da função pública. E, pergunto eu, para quem sofre a medida qual é a diferença? Bem sei, do ponto de vista do documento, os impostos entram no lado da receita e os salários do lado da despesa, logo, esta diminuía enquanto a carga fiscal ficaria contida no seu limite actual. Isto formalmente, ou seja, no papel. Porque, no caso da discussão sobre a redução de deduções fiscais, por exemplo, que foi apresentada como sendo uma “redução do défice fiscal”, poucos foram os que não consideraram que se tratava, de facto, de “um aumento de impostos”, pela óbvia razão de que quem passava a ter que pagar o que antes podia descontar passaria a ver a sua conta fiscal aumentada.
Ora, o aumento da carga fiscal significa menos rendimento disponível para as famílias e empresas e mais dinheiro nos cofres do Estado, certo? Então porque é que a redução do salário de uma parte da população, ficando o Estado com a fatia retirada, não é um aumento de impostos para essa parte da população? O efeito não é precisamente o mesmo? Do mesmo modo que a inflação é "um imposto escondido", só que para todos.
Nos idos de 80, quando o Governo de então, com o FMI cá, decidiu que não podia pagar o 13º mês aos funcionários, essa medida foi considerada um imposto retroactivo, retroactividade essa que foi considerada constitucional com argumentos que então o Tribunal Constitucional aduziu. Mas, que me lembre, foi considerado um imposto, o que foi aceite foi a sua retroactividade. Nessa altura, porém os funcionários públicos recebiam salário líquido, ou seja, estavam isentos de impostos, pelo que só acompanhariam o esforço fiscal equivalente ao da população com uma redução directa do salário líquido auferido.Depois, em finais da década de 80, quando houve a reforma fiscal, os funcionários passaram a ser tributados em IRS, compensando-se com o aumento que desse o anterior salário líquido, sem englobamento de eventuais outros rendimentos, ficando em igualdade de regime com os restantes contribuintes. Ou seja, não percebo como é que hoje ainda se contrapõe, à "impossibilidade de aumentar a carga fiscal”, a "possibilidade de baixar os vencimentos da função pública”, raciocinando-se como se os funcionários não fossem contribuintes que já sofrem a mesma carga fiscal dos restantes cidadãos pagantes.
Entenda-se, o que ouvi sobre esta matéria foi apenas, em abundância, analistas e comentadores a fazer piruetas com palavras e conceitos para dar palpites que só aumentam a confusão. A dúvida que aqui trago é muito simples: em que é que a redução dos salários de quem trabalha para o Estado não se traduz para os visados num aumento de impostos específico, a somar à tal carga excessiva que se considera intolerável?
Ora, o aumento da carga fiscal significa menos rendimento disponível para as famílias e empresas e mais dinheiro nos cofres do Estado, certo? Então porque é que a redução do salário de uma parte da população, ficando o Estado com a fatia retirada, não é um aumento de impostos para essa parte da população? O efeito não é precisamente o mesmo? Do mesmo modo que a inflação é "um imposto escondido", só que para todos.
Nos idos de 80, quando o Governo de então, com o FMI cá, decidiu que não podia pagar o 13º mês aos funcionários, essa medida foi considerada um imposto retroactivo, retroactividade essa que foi considerada constitucional com argumentos que então o Tribunal Constitucional aduziu. Mas, que me lembre, foi considerado um imposto, o que foi aceite foi a sua retroactividade. Nessa altura, porém os funcionários públicos recebiam salário líquido, ou seja, estavam isentos de impostos, pelo que só acompanhariam o esforço fiscal equivalente ao da população com uma redução directa do salário líquido auferido.Depois, em finais da década de 80, quando houve a reforma fiscal, os funcionários passaram a ser tributados em IRS, compensando-se com o aumento que desse o anterior salário líquido, sem englobamento de eventuais outros rendimentos, ficando em igualdade de regime com os restantes contribuintes. Ou seja, não percebo como é que hoje ainda se contrapõe, à "impossibilidade de aumentar a carga fiscal”, a "possibilidade de baixar os vencimentos da função pública”, raciocinando-se como se os funcionários não fossem contribuintes que já sofrem a mesma carga fiscal dos restantes cidadãos pagantes.
Entenda-se, o que ouvi sobre esta matéria foi apenas, em abundância, analistas e comentadores a fazer piruetas com palavras e conceitos para dar palpites que só aumentam a confusão. A dúvida que aqui trago é muito simples: em que é que a redução dos salários de quem trabalha para o Estado não se traduz para os visados num aumento de impostos específico, a somar à tal carga excessiva que se considera intolerável?
Por estes e outros exemplos invoco o filósofo francês Patrick Viveret que chamou a atenção para os perigos do recurso aos “deslizamentos semânticos sugestivos”…
11 comentários:
Não tenho palavras que expressem a minha admiração pela forma inteligente e lúcida como o problema é dissecado; e apenas me ocorre dizer mais o seguinte: -Uma clarividência que a muitos faz tanta, mas tanta falta...
Caro jotac, casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão...
Cara Suzana Toscano, pelo seguinte:
nas empresas privadas não há redução de salários, há outra coisa: falências, despedimentos e desemprego. Se quiser, o Estado que paga salários com o que cobra em impostos e taxas aos trabalhadores e empresas privados não precisa reduzir salários. Em vez de os reduzir os ditos, digamos em 10%, despeça 10% dos trabalhadores. O resultado é o mesmo, ou parecido. É uma questão de escolha.
Penso que o que nos está a fazer falta, mesmo! mesmo! mesmo!
É um "amazing" computador, capaz de nos transformar a vidinha, bastando um simples toque, numa simples tecla!http://www.youtube.com/watch?v=zSmOvYzSeaQ
Realmente os deslizamentos semânticos tiram-me do sério, por isso mesmo é que quando tenho de dizer algumas coisas, estas mais parecem um tiro de canhão e esta é também a razão pela qual nas reuniões europeias alinho com os países do norte da europa e também tenho muita simpatia pela clareza dos alemães.
Apesar de concordar com a minha cara Suzana Toscano e o seu racíocinio do ponto de vista do resultado final, agora vou ser bestialmente egoísta e pensar na minha pessoa:
Independentemente da natureza jurídica do meu vinculo à função pública (nota: imbróglio interno bastante interessante), que não me torna - ainda - numa funcionária pública mas a auferir de um ordenado equiparado, vejo de forma diferente o o facto do meu ordenado ser taxado numa percentagem mais alta ou o facto do meu ordenado ser reduzido.
Isto porquê? Porque se aumentarem a taxa do irs a posteriori, pois tenho de me calar porque o meu vencimento base continua o mesmo. Agora, se diminuirem o meu rendimento base ou eu provoco um motim aqui no burgo :D (e invoco a natureza jurídica do meu contrato de trabalho) ou negoceiam comigo a diminuição do ordenado base e respectiva redução do horário de trabalho.
É claro que existe uma outra opção e que é: a cessação do contrato e que é perfeitamente aceitável se estiverem dispostos a pagar uma quantia ainda bastante jeitosa... e generosa, diga-se de passagem.
Quanto ao cenário das PME em Portugal, é absolutamente aterrador. Estas empresas - que são aquelas que movimentam a economia portuguesa - estão absolutamente estranguladas é trágico, mas enquanto uma empresa - quando entra em falência - não paga aos trabalhadores que despede porque não tem dinheiro ou as indemenizações são míseras, o Estado não pode não pagar às pessoas que eventualmente despeça e não chega ali ao registo comercial a dizer que está falido e que quer encerrar.
Já fazia falta, cara Anthrax!
Olá JotaC,
Estou a ver que sim :) Está sempre tudo tão sério que já fazia falta alguém que vá dizendo as coisas à laia de comic relief :))
Suzana
Está na moda o ilusionismo das palavras, como muito bem sabemos e temos visto. Assim como a não receita pode ser despesa, também a não despesa pode ser imposto. Alguém se encarregará de chamar os factos pelos seus nomes...
Caro Helder Ferreira, não sei que medidas será necessário tomar ou deixar de tomar, apenas estranho que se considere que há uma carga fiscal excessiva (redução do rendimento disponível por efeito dos impostos) e se considere que a redução dos salários por via directa dos que soferem a mesmissima carga fiscal já é admissivel.
Caro Bartolomeu, não consegui ver o video por qualquer razão que não percebo, mas acredito que seja um bom contributo para a imaginação.
cara Anthrax, seja mesmo muito bem vinda, grande estreia, o seu comentário, ainda por cima sem perder o bom humor :)
Pois é Margarida, qualquer dia temos que andar com um dicionário de "equivalências".
Cara Suzana,
Muito obrigada! E perder o sentido de humor... nos tempos que se avizinham... "Jamais"!... Ainda por cima o marido não se quer mudar para a Lapónia... pois haja sentido de humor :)
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