Nove horas na torre. Contei-as bem. Olhei para o relógio e confirmei. As luzes dos candeeiros públicos, amarelecidas pela poupança, começaram a acender-se lentamente permitindo que continuasse a minha leitura após o jantar, espraiado junto da ribeira e a beberricar o miserável descafeinado. Habitualmente escolho a mesa mais próxima do candeeiro para poder ler. Estava de costas para a ribeira, quando, ao olhar para o lado direito, observo um senhor com um saco de plástico na mão, e de calções pelos joelhos, a aproximar-se devagarinho, do lado da fonte da Ponte da Praça, como se fosse um animal a perscrutar quem deveria ser a presa a abordar. Um pouco afastado dos demais, pelo motivo já enunciado, temi ser eu. Como já estava à espera, ouvi, atrás de mim, um voz delicada, timbrada e baixa, pedindo-me desculpa pela intromissão. Faz favor, disse-lhe, interrompendo a leitura. Foi o suficiente para iniciar a arenguice. Não é difícil perceber que queria pedir, como é óbvio, faltava-me saber qual a razão. Muito educado, limpo, de óculos, corte de cabelo normal e devidamente cuidado, aparentando 30 a 35 anos, começou por explicar que tinha sido “operado a uma flebite do braço direito”, e mostrou-mo, não sei se para provar a operação ou para mostrar que tinha mesmo o braço direito. Tinha andado em bolandas todo o dia para aviar uma receita. Já tinha ido a Penalva de Castelo, a Nelas, a Tondela e ao Carregal do Sal, mas nenhuma farmácia tinha o produto e, por este motivo, acabou por vir a Santa Comba. Conseguiu uma embalagem e agora teria de regressar na próxima quarta-feira (estávamos num domingo) para adquirir a que faltava. Falava num tom baixo, formal, educado, meigo e eu, naturalmente, calado, permiti que continuasse no seu devaneio. Só que lhe faltavam três euros para apanhar o comboio para Mangualde. Já lhe tinham dado de comer, inclusive uma sandes de sardinha, que era o que vinha a comer, antes de me abordar. Face à narrativa, pouco ou nada consistente, quer no que respeita à patologia, quer aos produtos que andava à procura, perguntei-lhe como é que o tinham operado a tal flebite do braço direito, ao mesmo tempo que lhe disse: - Sabe, é que eu sou médico! Quando lhe disse o que era, riu-se, explicando que o queria dizer é que tinha sido operado ao braço e tentou provar, mostrando, rapidamente, duas pequenas marcas cicatriciais que em nada se assemelhavam a qualquer ato cirúrgico. Mas o riso, de comprometido, foi suficiente para explicar que não tinha sido propriamente bem uma intervenção a uma flebite, mas antes que se afundasse mais em explicações, atalhei para saber qual era o famoso medicamento que o tinha obrigado a percorrer quase metade do distrito, e que não havia em localidade nenhuma, exceto Santa Comba, onde conseguiu uma embalagem. – Dormicum 15. – Dormicum 15? Mas eu ainda ontem receitei esse produto. – Sabe o que me disseram? O laboratório que o produz está com dificuldades e por isso não conseguem arranjá-lo. Eu consegui uma caixa. – Ai sim? Onde? Em que farmácia? – Aquela lá de cima, e, atabalhoadamente, conseguiu recordar-se do nome, pretendendo-me convencer da sua míni odisseia domingueira. Sabe, senhor doutor, sempre com uma voz suave e baixinho, eu agora precisava de três euros para apanhar o comboio para Mangualde. – Para Mangualde? - Sim. Eu já consegui que me dessem de comer. Não sei o que se estaria a passar pela aquela cabeça. Há muito que tinha detetado o falso enredo, quando falou da operação à flebite do braço direito. Como não tinha mau aspeto, foi mesmo delicado e não muito subserviente, permiti que me continuasse a enganar, ofertando-lhe um euro. Não quis ser desagradável, nem enxotá-lo numa esplanada que estava a encher a olhos vistos. Numa mesa, um pouco afastada, já começava a sentir os olhos da bisbilhotice aldeã assestados na nossa conversa, eu, com o livro entretanto reaberto, debaixo de um candeeiro de rua, e um jovem estranho de barba cuidada, saco de plástico na mão e de calções pelos joelhos. Imagino as inúmeras interrogações que começariam a pulular nos vizinhos da esplanada. Entreguei-lhe um euro, discretamente, ao qual agradeceu com um “muito obrigado”. Rodou nos calcanhares e, antes de se por a andar, de costas direitas, e em passo acelerado, ouvi-o dizer com enorme satisfação: - Já só faltam dois euros! Quando ouvi esta última frase interroguei-me: - Mas será que ainda vai a tempo de apanhar o comboio? Se é que havia comboios àquela hora...
Valeu a pena o euro. Um euro por uma pequena história...
Valeu a pena o euro. Um euro por uma pequena história...
5 comentários:
Caro Professor:
Nunca tão rica história custou um preço tão baixo!...
Tão rica e tão bem contada!...
Um euro? Mas essa estória foi muito barata, caro Prof. , mas como no-la contou saíu uma rica estória! Este verão, numa belíssima tarde de Julho, encontrava-me em Paris, sentada num banco de uma das pontes sobre o Sena a apreciar a maravilhosa paisagem, quando se aproxima uma senhora talvez com uns 50 anos, bem vestida e que, com pronúncia nitidamente inglesa, nos pergunta se falamos inglês. Yes, dissemos ao mesmo tempo. Então a senhora, com um ar muito desolado, disse que tinha que regressar a Inglaterra o mais rapidamente possível mas que estava “200 euros short” para pagar o hotel. Fiquei tão surpreendida com tal pedido que apenas consegui dizer: That is a tremendous amount of money! A minha amiga de viagem que não guarda para logo o que pode dizer já, responde com ar muito sério e com voz firme: Do you really expect us to give you 200 Euros?! A senhora balbuciou qualquer coisa que não consegui ouvir e lá foi em direcção a outro banco onde, por coincidência, estavam sentadas outras duas senhoras.
Haja mais euros desses que nós vamos amealhando boas histórias! Há tempos, estava eu parada num sinal vermelho na rotunda do relógio e vem uma rapariga bem arranjada, com um ar envergonhado, pedir-me por amor de Deus 5 euros para apanhar o comboio para o cartaxo, tinha o miúdo a sair da escola e tinham-lhe roubado a carteira há minutos. estava tão aflita, quase a chorar, que tinha vergonha de pedir, etc, etc, eu dei-lhe 3 euros porque não tinha uma nota de 5 e achei-me muito boa pessoa, coitada da mulher, que aflição! Pois não é que poucos dias depois lá estava a mesma rapariga a dirigir-se a mim, no mesmo sinal, a encetar a mesma conversa? Dei-lhe uma descasca em pêlo, que ela merecia mesmo um grande castigo porque à conta da sua aldrabice, a explorar a boa fé das pessoas, podiam muitos em apuros verdadeiros ficar sem a ajuda de que precisam! Foi-se embora a correr mas duvido que se tenha emendado.
Um euro? Esta história vale muitos, mas muitos euros! As tuas palavras são de uma riqueza e meiguice imensa.
Retrata-te na perfeição, meu pai...
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