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terça-feira, 21 de setembro de 2010

O estado do social



Creio que aqui, no 4R, já em tempos e por mais de uma vez nos referimos a este assunto dos idosos abandonados (ou acolhidos, conforme a perspectiva) pelos hospitais a que hoje o DN se dedica, apesar de não necessitarem de cuidados desses estabelecimentos de saúde.
Não deixa de ser chocante o fenómeno pela dimensão que a peça do DN revela, mas sobretudo pela que se calcula que exista para além desta, uma vez que serão muitos mais os casos em outros hospitais e outras instituições. Mas impressiona também que este Estado social tão louvado ultimamente não consiga garantir um minimo de dignidade na recta final da vida daqueles que deram ao longo dela um contributo muitas vezes sofrido, para a construção do que a sociedade que somos tem de bom.
Estes casos não deixam, por outro lado, de nos fazer pensar no crepusculo de outro dever, o dever de solidariedade e de coesão familiar, a profunda crise, afinal, do valor da responsabilidade individual. Muitos daqueles idosos têm famílias. Algumas não terão condições de acolhimento sem sacrifício da sua precária felicidade. Mas outras tê-las-ão certamente. E a essas não assalta, pelos vistos, o remorso de deixar que os seus vivam na indignidade de uma vida passada num recanto de um hospital em contacto permanente com a doença, cedido pela piedade de um administrador ou pela influência de um médico.
Enferma, profundamente enferma está esta sociedade, e não se encontra nem remédio nem SNS que lhe valha.

6 comentários:

Isa Maria disse...

estamos numa sociedade do "salve-se quem poder", mesmo incluindo os que tanto nos deram a nós. Uma triste realidade.

Margarida Corrêa de Aguiar disse...

É verdade, José Mário, temos falado sobre este assunto aqui no 4R em diversas ocasiões, mas nunca é demais assinalar esta faceta de subdesenvolvimento humano que nos deveria envergonhar.
Se é verdade que há famílias extremamente egoístas que esquecem os seus pais e avós depositando-os num qualquer hospital, não é menos verdade que as políticas sociais não respondem às necessidades mais essenciais assim como não protegem a família.
O mal é sempre o mesmo, egoísmo, materialismo, falta de sensibilidade social e falta de vontade de encarar de frente o envelhecimento.

jotaC disse...

Caro Drº Ferreira de Almeida:
É verdade, já aqui foi abordado este tema mas nunca é demais, até porque a tendência a médio prazo é o aumento exponencial dos casos de abandono de idosos nos hospitais. Uma sociedade como a nossa composta de gente “velha” a caminho da reforma, cujo valor dessa reforma não vai chegar para pagar um “lar” -o que lhe restará!? Concordo que muitas famílias rejeitam os seus velhos sem razões que justifiquem tamanha desumanidade, mas acho que não serão tantos assim...
Nos dias que vão correndo ouvem-se muitas vozes a debitar -frases feitas- contra o estado social. Pessoalmente, não os compreendo, sou a favor do estado social, um estado social pago por todos e que a todos deverá acorrer se necessário. Além do mais, a génese do estado social começa no estado novo com a “instituição da previdência social”. Não começou no 25 de Abril de 1974!
Quero terminar transcrevendo aqui o que li algures e guardei nos meus documentos:

“Um senhor de idade foi morar com seu filho, nora e o netinho de quatro anos de idade. As mãos do idoso eram trémulas, sua visão embaçada e seus passos vacilantes. A família comia reunida à mesa. Mas, as mãos trémulas e a visão falha do avô o atrapalhavam na hora de comer. Ervilhas rolavam de sua colher e caíam no chão. Quando pegava o copo, leite era derramado na toalha da mesa. O filho e a nora irritaram-se com a bagunça.
- "Precisamos tomar uma providência com respeito ao papai", disse o filho.
- "Já tivemos suficiente leite derramado, barulho de gente comendo com a boca aberta e comida pelo chão."
Então, eles decidiram colocar uma pequena mesa num cantinho da cozinha. Ali, o avô comia sozinho enquanto o restante da família fazia as refeições à mesa, com satisfação.
Desde que o velhinho quebrara um ou dois pratos, sua comida agora era servida numa tigela de madeira.
Quando a família olhava para o avô sentado ali sozinho, às vezes ele tinha lágrimas em seus olhos. Mesmo assim, as únicas palavras que lhe diziam eram admoestações ásperas quando ele deixava um talher ou comida cair ao chão.
O menino de quatro anos de idade assistia a tudo em silêncio. Uma noite, antes do jantar, o pai percebeu que o filho pequeno estava no chão, manuseando pedaços de madeira.
Ele perguntou delicadamente à criança:
"O que você está fazendo?"
O menino respondeu docemente: - "Ah, estou fazendo uma tigela para você e mamãe comerem, quando eu crescer."
O garoto de quatro anos de idade sorriu e voltou ao trabalho. Aquelas palavras tiveram um impacto tão grande nos pais (…)”

Anónimo disse...

Obrigado, caro jotaC pelo comentário mas sobretudo pela eloquência da estória.

jotaC disse...

Ora essa, caro Drº Ferreira de Almeida!... Eu é que lhe agradeço, a si e aos outros autores, bem como a todos os que por aqui passam, a benevolência que dispensam aos meus comentários que não são mais do que meras opiniões...

Adriano Volframista disse...

Caro JMFAlmeida

Um tema interessante e revelador dos mínimos a que chegámos.
O aparelho judiciário aplica a lei. Para além de outras dimensões uma das funções da lei (em sentido amplo entenda-se) é preservar e manter a coesão social seja, prevenindo seja, punido.
O caso que apresenta é um claro exemplo de disfunção social e, apenas a inexistência de comandos legais, lacuna essa que "impedisse" o Estado de "prevenir" ou "punir" essa disfunção, poderíamos estar em presença de um comportamento que fizesse perigar o tecido social.
O nosso ordenamento jurídico contêm normas mais do que suficientes sobre a situação: desde o comando que impede o abandono de pessoas em perigo até ao abuso de direito, a panóplia de meios é grande. Também está indicado quem, pelo menos em última instância, pode accionar e implementar os mecanismos legais: o Estado através dos seus agentes qualificados, os Delegados do MPúblico.
A nossa "rainha de inglaterra" antes de o ser, tinha anunciado que o MP iria adoptar uma política de tolerânica zero quanto à violência nas escolas; nessa altura considerei que "tínhamos homem": uma nova e refrescante abordagem da dimensão da lei e do direito.
Os casos no DN devem ser tratados da mesma forma, temo é que, desde as declarações em que se considerou uma "rainha de inglaterra" o nosso bem amado PGR, parece ter perdido o fulgor....
Compete à sociedade através do Estado impedir que a coesão social seja posta em causa por comportamentos que, no mínimo,são um abuso de direitos concedidos. Não faltam meios nem legais,nem materiais, pode é faltar outra coisa, mas isso não há lei que possa colmatar.....infelizmente, a lei não se aplica sem Homens....

Cumprimentos
João