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domingo, 10 de fevereiro de 2013

"Bombas-de-rabear"


Já compreendi melhor o carnaval, ou melhor, já o senti sem o perceber. Em criança éramos iniciados nesta festividade com extraordinária facilidade. Se a brincadeira era a melhor forma de vida ao longo do ano, um divertimento deste tipo atraía qualquer um, e, além de mais, não tínhamos aulas até à maldita quarta-feira de cinzas em que passávamos dos oito aos oitenta. A partir daqui nada de brincadeiras, pelo menos as mais aparatosas e visíveis ao olhar dos adultos, tínhamos de refrear a língua a que se juntava a obrigatoriedade de um cinzentismo patético com muito pouco riso. Era a mesma coisa que entrar num deserto de tristeza onde imperavam normas sociais e religiosas bastante apertadas, aliviadas apenas a meio da Quaresma, em que se chegavam a realizar os desejados bailes de micarême para compensar a excessiva abstinência. Abstinência a que não era estranha a imposição de dietas rigorosas, com as quais embirrava, mas o facto de ser criança sempre ajudava a furar o regime.
O desejo de vestir de forma diferente era agradável, mas eu preferia as serpentinas, os papelinhos, os "estalinhos", as bichas-de-rabear e até as "bombas", apesar de todos os avisos e perigos inerentes ao seu uso, mas, às escondidas, lá ia uma ou outra. Ainda vi, gozava que nem um perdido, jogar ao caco, as "caqueiradas", em que lançavam, de mão em mão, velhos cântaros de barro de asa partida ou rachados, que, desta forma, encontravam uma última finalidade, divertir os foliões, escaqueirando-se no chão quando na roda alguém não os conseguia apanhar.
Recordo de me terem vestido de carnaval por duas vezes, a primeira, fruto de uma birra própria de criança, queria imitar as outras, consegui, in extremis, que me transformassem numa espécie de pescador meio aldrabado, com uma rede às costas. Para quê? Para ficar encostado à parede da estação a apanhar sol e ver as pessoas nas suas múltiplas azáfamas. O que me alegrou mais foi o bigode feito com um pedaço de carvão. A segunda já foi mais elaborada. Um tio lembrou-se de me oferecer um traje de arlequim, sofisticado para a época e local, a contrastar com a pobreza do traje de pescador do ano anterior, transformando-me numa personagem que só muito mais tarde fiquei a saber quem era. Vaidoso, tapei a cara com a máscara e entrei, na calada da noite, escura como o breu, pela porta da cozinha de uma familiar, provocando-lhe um tremendo susto, quase de morte, tamanho foi o grito e o chilique. Fugi para casa e despi-o.
Hoje, sábado, vi as fotografias dos meus netos, o "homem-aranha", a "mulher-gata" e a "sevilhana", todos felizes, a brincarem ao carnaval. Fazem bem, pelo menos não vão ficar ansiosos com o período que se segue, a Quaresma e as suas restrições, por vezes mais do que severas, e também não correm riscos de sofrer no corpo muitas das asneiras e imprudências que antigamente se faziam, mas que tenho pena de não poder lançar uma bomba-de-rabear, lá isso tenho, mas, agora, compenso essa saudade, vendo na televisão outras "bombas" a rabear...

1 comentário:

Tavares Moreira disse...

Caro Professor,

Como eu me recordo de tantas brincadeiras e partidas de Carnaval semelhantes às que, com a magia da sua escirta, aqui nos descreve com tanta graça!
Confesso-lhe que fiquei hoje um tanto surpreendido pois, tendo esta manhã feito alguns quilómetros no paredão Estoril-Cascais, onde havia bastante gente como é habitual ao fim-de-semana, não vi uma só criança fantasiada para assinalar a quadra! O que se passa?