Conviver com colegas fora do âmbito profissional é útil, alivia a tensão e permite outras coisas: descobrir novos interesses, recordar episódios de vida, transmitir emoções, partilhar experiências e aprender uns com os outros nas mais diversas áreas. No entanto, acabamos sempre por cair em conversas médicas. Há uma força que nos atrai, e não conseguimos fugir. Bem tentamos, mas é impossível. Foi o que aconteceu num sábado à noite, em redor de uma mesa, um bom jantar acompanhado de razoáveis bons vinhos, razoáveis porque o meu colega, homem do Douro, sabe, e de que maneira, da poda enológica! Um jantar num espaço muito aprazível depois de uma tarde repleta de conferências. Falámos da situação económica e financeira do país, da desgraça do desemprego e do incremento estúpido das depressões, para a maioria das quais não há antidepressivos que valham. - É impossível tratar muitos casos com fármacos, o que eles precisam é de apoio, de suporte social. - Sim, disse. Concordo perfeitamente. Muitas vezes não sei como solucionar certos problemas. Procuram-nos e ficamos destroçados, porque não temos meio de os confortar ou resolver situações dramáticas. - Muitas vezes dizem-me que lhes apetece morrer. "Queria tanto morrer, levar com um tiro, ou cair morto aqui, neste preciso instante". Pois, pode ser, mas aqui não há meio para lhe acudir, não espere que eu a mate (o "a" é mais prevalente do que o "o"). Sorri e disse-lhe que também tenho encontrado muitos casos de pessoas que manifestam desejo em acabar com a vida. Talvez seja uma manifestação que não corresponde à verdade, a uma real intenção. De qualquer modo, há sinais que apontam para uma tendência suicida e parasuicida que podem agravar-se caso não se alterem as condições em que estamos a viver. A partir daqui, estes fenómenos foram passados a pente fino e, como médicos, ficámos aprisionados ao tema até nos despedirmos.
No regresso ao hotel fui obrigado a pensar neste assunto, o desejo de morrer quando as condições de vida são adversas, quando a vida se transforma numa megera maldita, filha de humanos depravados e sem quaisquer escrúpulos, levando ao limite outros, mais frágeis e mais honestos. Mas também fui obrigado a pensar no respeito que muitos me merecem por desejarem a morte, na sequência de situações graves, degradantes, em que a saúde desapareceu definitivamente e a morte fez a sua entrada em palco de forma lenta, dolorosa, diabolicamente agressiva, sem qualquer respeito pelo ser e a sua pobre alma desejosa de liberdade, presa arbitrariamente a um corpo que entrou em decomposição irreversível. Curioso, pensei, dois momentos distintos em que o ser humano pede para morrer. Uma das situações é fruto de atividades menos escrupulosas, em que a vigarice é rainha e senhora; na outra é o corpo que se lembra de entrar em decomposição irreversível em vida, em que não há possibilidade de solucionar o que quer que seja, a não ser antecipar a libertação da alma sofredora. Quanto à primeira, recuso, como seria de esperar, dar-lhe seguimento, qualquer que seja a circunstância, quanto à segunda, apesar de ser proibida a eutanásia, entendo que merece ser debatida de forma a preservar a dignidade humana.
Adormeci a pensar nisto, a vontade de morrer...
3 comentários:
Excelente texto, uma humanidade que não cola com uma república pouco humana e desrespeitadora do ser público.Tivessem todos os Republicanos a sua «ética humana.» Obrigado, caro escritor Massano Cardoso.
Caro Professor, muito interessante este seu texto e é algo que de sempre tenho presente em mim, a morte quando chegar a uma velhice dependente. Algo que se agrava quando não temos filhos. Mas não só neste caso. Já fui motard, em tempos idos. Tinha sempre presente a possibilidade de ter um desastre e ficar vegetal ou a mexer só os olhos. Preferia morrer a ficar numa situação destas. Um outro caso, cancro. Desde pequeno que me habituei (genes de má raça por certo) a ver gente a suportar tratamentos para cancros diversos. E a morrer do próprio cancro mais cedo ou mais tarde. Ou seja, os tratamentos serviram para prolongar a vida realmente mas com que qualidade... Por causa dessas impressões fortemente vincadas no meu espirito sei que se e quando me tocar esse maldito recusarei tratamento curativo aceitando apenas paliativo. E muitas e muitas mais doenças. E a questão social e económica que muito interessantemente foca. Consegui alcançar um certo desafogo económico ao longo dos anos que em larga medida deu muito cabo da minha saúde por excesso de trabalho. Se dum momento para o outro perdesse tudo será que teria coragem para começar tudo outra vez? Duvido. Seria andar caminho já andado e não teria forças para o fazer. Não sei como reagiria, sinceramente. Mas entendo plenamente os banqueiros que em 1929 se atiraram pela janela dos seus escritórios.
Os conceitos de vida e morte são muito variaveis de pessoa para pessoa. Tal como são os motivos que cada um possa ter para manter-se vivo.
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