Recordo-me, frequentemente, das noites de criança, das noites de inverno, frias e escuras, em que era obrigado a deitar-me cedo, como se houvesse algum interesse em contrariar a noite. Não havia. Nem podia. Uma terra pobre em que a luz, fraca, era, muitas vezes, incapaz de acender a primitiva e rara televisão que fazia o furor da vizinhança. - Hoje não se consegue ver nada. - Pois não. - Boa-nôte. - Boa- noite, até amanhã, vizinha. O amarelo sujo das lâmpadas não conseguia reverberar as paredes do quarto, apenas a velha telefonia, parca de alimento, conseguia debitar sons musicais intervalados de ruídos e de alguns silêncios, que, mesmo assim, não conseguiam impedir a sequência musical produzidas por bandas que debitavam estranhos sons melodiosos através do espreguiçar de múltiplos instrumentos, como os clarinetes, trompetes e saxofones, sons únicos que deverão ter tido um efeito tipo imprinting, que ainda hoje me perseguem. Curioso. Deitado, ouvia belos acordes musicais que tranquilizavam e seduziam provocando uma sensação única, a mim, um ser cuja dimensão e existência se limitava apenas a tentar deitar de fora a cabeça a partir de um delicado ovo. Mas, antes, segundo mais tarde me contaram, já tinha sido iniciado nestas doces e noturnas sensações musicais. Deitavam-me e colocavam a velha, na altura nova, telefonia a debitar música, música suave, suavíssima, que os ruídos estrambóticos, devido às corridas pelo éter, não conseguiam roubar a doçura de um estranho efeito tranquilizador. Percorro a memória em busca dessas noites e elas surgem meio ofuscadas pelas cortinas do tempo, mas, mesmo assim, consigo sentir, mais do que ver, esses maravilhosos episódios. Presumo que sejam as mais antigas memórias que possuo, meio visuais, meio escuras, meio frias, mas, sobretudo, muito deliciosas e saborosas em termos auditivos. Talvez a minha alma se tenha despertado graças aos sons das bandas e acordes musicais. Deve ter sido isso, porque ao longo da vida nunca consegui perceber muito bem a razão da emoção que sentia quando ouvia determinadas melodias dos anos que precederam o meu nascimento. Essas músicas tinham, tinham?, têm o condão de me transportar no tempo. Consigo facilmente viajar através do tempo, refugiando-me em noites de inverno, escuras, frias, em que as lâmpadas apenas conseguiam deixar vislumbrar um pobre amarelo, o amarelo da fome. Em contrapartida, revejo e sinto como entendia o mundo, um mundo suave, silencioso, entrecortado de belos e estranhos acordes, sem dor, sem medo, sem alegria, apenas com uma sensação de ter a alma aquecida e tranquila nas longuíssimas noites, frias e escuras de inverno. Olho para a telefonia, e ela, silenciosamente, sorri. Sinto que é uma caixa misteriosa capaz de transmitir esperança e confiança na vida. Quem diria que ela, com os seus estranhos ruídos, ainda seja capaz de me colocar no doce e divino éter. Sem sombra de dúvida um belo sítio para dormir e viver sob os tranquilizantes sons de bandas dos anos que precederam o meu despertar. Eu ouço-os neste momento. Oh meu deus, como me apetece fugir para essas longas, escuras e frias noites de inverno...
1 comentário:
Belíssima evocação.
Também recordo frequentemente o efeito de paz e satisfação interior sentidos, quando à noite, ao serão escutávamos a telefonia. E não eram somente as músicas de orquestra, eram também os folhetins e as comédias da Lélé e do Zéquinha, e mais tarde do Raúl Solnado, etc.
Talvez porque somos sensívelmente da mesma idade, "bebemos do mesmo tipo de emoções".
Mas recordo também, o som da velha telefonia, em casa da minha avó materna, numa aldeia perto de Seia, onde passava as férias da escola; tanto do som que dela brotava, como o amarelado da iluminação, tal e qual como o Sr. Professor os descreve.
São estas recordações que por vezes me fazem reflectir e perguntar de mim para mim: desde aqueles tempos, regista-se uma nítida evolução social, sobretudo a nível do conhecimento e da facilidade de comunicação, tanto no que respeita às tecnologias, como no acessoa a elas, às vias de comunicação, etc. Mas, vivemos hoje com mais alegria, somos hoje mais conscientes da nossa humanidade, fazemos hoje melhor uso da próximidade, usamos hoje essas tecnoligias todas, ao nosso dispôr, para evoluírmos como pessoa e partilhar com os outros os nossas saberes, as nossas experiências, num sentido de uma evolução consistente? Ou... unica e alarvemente, gastamos recursos, sem deles retirarmos algo de proveito para nós e para os outros que connosco partilham a Terra?
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