Durante a campanha eleitoral, visitámos uma instituição sem fins lucrativos que, entre múltiplas actividades de apoio aos mais carenciados, tem uma importante acção nos bairros de realojamento, criando condições para a integração social. Uma dessas actividades é a abertura de creches e espaços para os tempos livres de crianças e jovens onde, com pouco dinheiro, muita imaginação e capacidade de mobilizar voluntários das comunidades onde trabalham, conseguem agregar e orientar muitos dos que ali habitam.
A creche que visitámos era um espaço bem arranjado, com cores muito alegres e com tudo o que é necessário para manter interessadas umas dezenas de crianças, mas na cave de um prédio situado numa "ilha" de prédios todos iguais, sem árvores ou jardins, num local anódino. Tinha janelas largas, mas quase ao nível do chão, e estranhei a ausência de grades.
Contou então o responsável pela instituição que, na véspera da inauguração, as janelas apareceram todas partidas, num sinal de hostilidade aos "intrusos" do bairro.
Não havia tempo nem dinheiro para mandar arranjar as janelas e ainda havia menos a vontade de se deixerem vencer por aquele sinal de intimidação. Decidiram então abrir a creche como estava previsto e, no dia seguinte, começaram a chegar as mães com os meninos. A suspresa perante o bonito espaço deu lugar à fúria e à reclamação por estarem as janelas partidas na sala grande, os vidros no chão com uma barreira para não serem pisados e, claro, o frio a entrar por ali dentro sem cerimónias.
O Director explicou que estava tudo pronto do lado deles, mas que alguém tinha resolvido estragar tudo e que não era possível gastar mais dinheiro sem a certeza de que não se ia repetir. A creche servia aquele bairro, cabia aos moradores fazer a sua parte e proteger as instalações porque eles nem iam chamar a polícia. Se queriam estragado, ficava estragado.
Começaram então os miúdos a dizer entre eles que toda a gente sabia que aquilo ia acontecer e quem é que tinha feito, mas o Director disse que não lhe interessava, não era problema dele, a creche ia funcionar assim até lhe garantirem que podia arranjar as janelas sem voltar a acontecer.
No dia seguinte foram dizer-lhe que estava tudo tratado. Que pusesse umas janelas novas e que nunca mais ia acontecer.
A creche funciona até hoje, sem grades e sem problemas.
5 comentários:
Cara Suzana,
Um dia, no Rio de Janeiro, em conversa com alguém ligado a um banco, foi-me dito que havia um balcão desse banco mesmo no meio da favela da Rocinha. Perante o meu espanto, disseram-me 'e fique sabendo que é o único balcão do Rio que nunca foi assaltado porque, se fosse, os assaltantes apareciam todos mortos...'
Por pior que seja o bairro, qualquer coisa que seja feita em seu favor recebe, e que percebam que é em seu favor, a gratidão dos moradores.
É tambem interessante perceber um fenómeno que acontece, e ainda bem, frequentemente no nosso país: pessoas, daquelas mesmo dedicadas à profissão que exercem, a serem acarinhadas e protegidas pelas populações dos bairros problemáticos onde trabalham: professores, equipas de apoio a toxicodependentes, de apoio social, enfim, vários serviços públicos que resultam bem porque têm como denominador comum a dedicação, o gosto e a responsabilidade de quem
neles trabalha.
Agora o veneno :) :
A estes, o país tem para com eles uma dívida de gratidão. Os outros, têm para com o país uma dívida de trabalho.
Caros Tonibler e Zorbian, o trabalho dos que se dispõem a agir em zonas difíceis e junto de comunidades que respondem à exclusão com hostilidade só pode ser feito com o espírito que referem. Além disso, há um aspecto interessante que é o facto de não se poder impôr nada, é preciso cativar ou deixar que sejam esses grupos a abrir o espaço entre eles. O primeiro sinal é de marcação de território - só cá estão se nós deixarmos. Mas o segundo é de aceitação porque foi a comunidade que reconheceu o seu interesse e se manifestou a favor, e a liderança do grupo também se afirma ao satisfazer o seu "clã".
Outra história que ouvi foi que a mesma instituição abriu uma acção de formação para tratamento de idosos de modo a que os jovens do bairro pudessem prestar serviço nessa área. A comunidade cigana não deixou que as suas raparigas frequentassem o curso por entenderem que os idosos não devem ser cuidados fora da família e que as suas filhas não iam participar numa acção que tinha como base o abandono ou a entrega a terceiros de uma tarefa que cabe à família de cada um...
Olá Jorge Lúcio, quando respondi ainda não tinha lido o seu comentário... È claro que há uma cultura de "ghetto", essas pessoas foram agrupadas sem critério e deixadas sem outros apoios por isso encontram novas formas de se organizar e proteger que lhes permita sobreviver. A "integração" social é muito mais do que se construirem casa-sim-casa-não, se não houver esse tal esforço para entrar nesses espaços é muito provável que em breve se afirme o grupo dominante, seja ele qual for. Neste momento, os que partem os vidros devem ser a maioria, e os outros pagam aos seguranças dos prédios, mas acredito que com o tempo e o acesso aos equipamentos sociais que estão previstos, se dê a tal integração. A pouco e pouco e desde que cada comunidade veja as vantagens que pode ter nisso.
E, já agora, é um prazer tê-lo neste blog, a inteligência e sentido crítico dos nossos comentadores são um grande estímulo.
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