A análise do conteúdo do último discurso “republicano” de Sampaio motivou eloquentes editoriais da imprensa escrita de hoje. Para além, dos temas quentes que a intervenção presidencial directa ou indirectamente abordou, o que salta para as páginas dos jornais são os “recados” e as leituras das “entrelinhas”. Esta é uma das principais características da intervenção pública de Jorge Sampaio ao longo dos seus dois mandatos: sempre com um discurso muito redondo onde todos se possam rever, a única forma de chegar à substância é através das “entrelinhas” e dos recados que envia aos diferentes protagonistas da vida política portuguesa.
Se recordarmos os muitos discursos do 25 Abril, do 5 de Outubro, do 10 de Junho, das cerimónias de reabertura do ano judicial, a grande expectativa que esses discursos de Sampaio geram é sempre em torno dos recados que pretende enviar, raramente da expressão rigorosa e transparente do seu pensamento. Eu sei que o defeito poderá estar em quem lê e ouve e não em que diz, mas até nesse aspecto a conduta de Sampaio sempre tem sido a de alimentar essa magistratura de recados.
Eu espero que o próximo Presidente da República não adopte o mesmo estilo, sob risco de reunir um consenso muito alargado, mas a sua acção se revelar ineficaz. O consensualismo político é o pior dos males para um país que se debate há muito com uma crise estrutural não só da sua economia, mas do próprio Estado e do sistema político que o sustenta.
Curiosamente naquilo que não são recados, o risco da asneira é enorme. Falo precisamente na proposta de “inversão do ónus da prova” para casos de enriquecimento não explicado: “Quem enriquece sem se ver donde lhe vem tanta riqueza terá de passar a explicar à república «como» e «quando», isto é, a ter de fazer prova da proveniência lícita dos seus bens”. Isto é no mínimo preocupante para uma sociedade que se afirma de cidadãos livres e promotora da iniciativa individual.
Mas mais preocupante ainda é o pretexto utilizado, ou seja, o combate à corrupção e a falta de meios para apuramento da prova. O que Sampaio está a reconhecer é a ineficiência do sistema judicial e em vez de apresentar propostas para superar esse tipo de problemas, dispara sobre o cidadão que cometa o pecado de enriquecer sem que a “república” dê por isso.
Eu espero que este recado tenha o mesmo destino que muitos outros recados de Sampaio tiveram: ouvidos moucos ou o já tradicional esquecimento nacional.
[actualização]
Como houve muita a gente a ler como eu li o discurso presidencial de 5 de Outubro último, a Presidência publica hoje uma nota de imprensa tentanto esclarecer o "verdadeiro" significado do discurso. Ainda fiquei menos esclarecido quanto à pretensão do Sr. Presidente e mais esclarecido quanto à utilidade de tal proposta: para esquecer!
3 comentários:
Caro Pinho Cardão, permita-me que lhe tire o chapéu, pela eficácia do comentário, servido pela mais fina ironia.
A excelente nota de David Justino não poderia ter tido melhor remate.
Penso que Jorge Sampaio foi 'o Presidente'. Na forma como está montado o sistema, o recado é a forma de funcionamento corrente do Presidente da República. Não podemos esquecer que não cabe ao presidente dizer aquilo que cabe ao povo 'dizer'. Nem pode o presidente deixar que façam orelhas moucas àquilo que o povo 'disse'. Por isso, é natural que saia 'redondo'.
Na maior parte dos casos, os recados tinham razão de ser e nos actos, ninguém pode apontar nada ao PR, mesmo quando tudo dependia exclusivamente do seu juízo.
No entanto, por vezes, Jorge Sampaio contrariou o seu modo de actuação confundindo aquilo que o povo 'disse'(no voto) com aquilo que o povo diz (vox pop). E saiu asneira. Foi o caso, como foi o da vida além do deficit e do risco dos bancos. Excelentes oportunidades para estar calado para não estragar dez anos que podem servir de manual de procedimentos de um PR.
Por acaso acho que a nota de imprensa insiste na asneira. É asneira, mas é coerente.
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