Num lindo texto publicado hoje no Público, a autora, Mafalda Mourão Ferreira, conta que uma das coisas mais importantes que aprendeu com Stella Piteira Santos foi que ela lhe ensinou “a importância de saber cozinhar: para manter as pessoas unidas à volta de uma boa mesa e de uma boa conversa”.
Faz parte da nossa cultura enquanto povo, esse gosto por um bom petisco como pretexto para um bom convívio, as duas coisas sempre interligadas. O meu pai costumava dizer que os filmes de família, que são centenas e abarcam a vivência de várias gerações, tinham sempre o mesmo fundo da mesa posta, das pessoas a comer e da exposição de iguarias…
Há para os portugueses uma espécie de sacralização das refeições, um símbolo que tanto pode ser da luta pela sobrevivência como do sucesso, em qualquer caso uma razão de partilha com a família ou com os amigos. O ritual do jantar em família prolongou-se para além da diluição de muitos dos valores que ele expressava, como a importância da pontualidade nesse momento de reunião do clã, o respeito pelo chefe de família e pela organização doméstica a cargo da mãe, a educação à mesa nos gestos, na contenção das palavras, na precedência a servir-se, ou ainda a selecção do que era preciso contar e ouvir. As refeições, em particular o jantar, eram um momento educativo por excelência, no seu sentido mais amplo de transmissão de valores, de cultura, de comunhão de angústias e alegrias, de expectativas de vida.
Li algures que está a tornar-se moda as refeições “drunch”, a emparceirar com os já populares “brunch”. Estes foram a designação comercial do almoço simplificado (lunch) que junta o pequeno almoço (breakfast), geralmente ao fim de semana, para quem se levanta mais tarde ou para quem quer descansar da cozinha, juntando tudo numa refeição que faz a bissectriz entre o que mata a fome da manhã e o que sacia para a tarde que já começa. Agora inventaram o “drunch”(dinner+lunch), que junta o almoço tardio e o jantar, numa resposta prática para as necessidades de quem já não quer jantar a sério ou de quem recolhe cedo.
Não digo que isto não seja muito prático e dinâmico, certamente que sim, há que simplificar. Mas, a pouco e pouco, almoço e jantar vão perdendo a sua formalidade, vai-se ali à cozinha e cada um prepara a sua refeição tardia ou a sua ceia precoce, cada um à sua hora, na medida em que lhe convier. Adivinho que já não haverá crianças amuadas à frente de um jantar sem ketchup, nem jovens a ouvir ralhetes porque chegaram depois do pai estar sentado à mesa, nem mães ansiosas por ouvir gabar os seus cozinhados. E sentarem-se todos à mesa, sem televisão nem telemóveis, já deve ser uma raridade.
Tudo muito simples, à medida de cada pessoa. Só falta tudo o resto, que é muito.
8 comentários:
A periodicidade das refeições é uma construção relativamente recente e não obedece a necessidades previamente estabelecidas. Desde sempre, o homem, e os outros animais, comiam, e comem, quando têm oportunidade de comer. Relativamente aos humanos, ainda hoje acontece, em muitas zonas do mundo, comerem quando há possibilidade para tal. Não existem pequenos-almoços, almoços e jantares para eles, como não haviam para os nossos antepassados das cavernas.
Passar a comer em certos momentos resultou mais da necessidade de compartilhar momentos particulares, permitindo a socialização, do que “exigências” dietéticas! Ao atenuar a fome, atenua-se frequentemente a agressividade, estabelecem-se ritos, resolvem-se problemas, criam-se laços, embora tenham sido, também, aproveitados para envenenar um inimigo ou trespassar-lhe o coração com um punhal bem afiado. Mas estes últimos casos são a exceção e não a regra.
Agora, o que se está a observar é um retorno a um certo grau de primitivismo, descurando a tal socialização, na qual as refeições desempenham um papel fulcral, a par de muitos outros rituais, nomeadamente os de iniciação que, entretanto, se vão perdendo.
A vida gira a uma velocidade cada vez mais louca que não permite parar para comer, e muito menos para pensar. Nestas “coisas”, o estômago tem prioridade sobre o cérebro. Começam a matar a fome de qualquer forma, e a qualquer hora, deixando à míngua o pensamento. O não respeito pela construção social da periodicidade das refeições é mais uma forma de agravar a fome do espírito. Mas, desde que a “mula” esteja cheia...
Por volta do ano de 1845, Doctor David Livingstone, durante uma expedição ao interior da Àfrica Central, relatou o habito de vários povos que, sujeitos à escassez de alimento, sempre que tinham oportunidade de encontrar caça, comiam até à exaustão, ficando depois num estado quase inanimado, de ventres inchados, durante alguns dias.
Com as crises que graçam pelo mundo, é talvez sensato que nos comecemos a habituar a uma refeição diária.
Em termos de controlo de alimentação, o caso mais horroroso e gritante que conheci, foi o de um homem que por ser pobre e viver com imensas dificuldades, mesmo que por acaso, tivesse abundância de comida num determinado dia, ficava sempre com fome, propositadamente, para não habituar o organismo a quantidades de comida que depois não podia manter!
Chamava-se esse homem, Antóio Oliveira Salazar, seria, caro António?
Era assim mesmo, a hora das refeições era sagrada e ai de quem chegasse atrasado que logo caía o carmo e a trindade! Apesar da minha família ser pobre (as refeições na mesa da sala eram só nos dias de festa ou quando alguém importante, o regedor ou o meu padrinho de baptismo,iam lá a casa), era nesta altura que nos reuníamos todos na cozinha e nos olhávamos de frente como uma verdadeira família.
Tive a sorte de conviver com dois miúdos gémeos muito simpáticos, filhos de um médico do Porto, um tal Drº Diamantino Pombo, onde passava parte das minhas férias de verão em sua casa, e onde aprendi algumas regras e boas maneiras de estar à mesa. Aquilo que não aprendi por observação, a mãe deles teve a paciência de me ensinar. Com o pai dos miúdos não aprendi nada (só de olhar para ele borrava-me todo), à mesa dizia sempre as mesmas palavras ao filho Paulinho que usava o cabelo grande, à moda dos Beatles: -tira-me essas melenas da frente rapaz…quero ver-te os olhos! Escusado será dizer que o rapaz fazia ouvidos moucos, pois tinha a mãe como cúmplice. Eram estas as únicas palavras que se ouviam e o som de um sininho para chamar a criada sempre que o senhor queria ser servido de mais alguma coisa.
Uma refeição sòzinho tem pouco sabor. Por isso, cara Suzana, sou um pouco mais extremista:só falta o resto...que é tudo!...
É isso, caro Massano Cardoso,essa perspectiva "evolucionista" ainda nos deixa mais alerta para o "involucionismo" que só olham para o alimento do físico, aquilo a que basicamente se chama "matar a fome".
Caro Bartolomeu, creio que não é o número de refeições que importa, aliás acho que essa até foi a prática corrente no nosso País, pela pobreza ou pela dureza do trabalho diário que só permitia a ceia, mas eram momentos de reunião da família, houvesse ou não consciência d aimportância que tinham para além de alimentar o grupo.
Caro Antóniodos anzóis, tinha ele muita razão, lá diz o povo que tanto se morre da fome como da fartura!
Caro jotac, belo depoimento, a trazer aqui menos teoria e mais prática, é muito interessante o modo como vê hoje e valoriza essa "interacção" social e também a sua apreciação de rapzinho quanto à austeridade e distanciamento do pai, em contrate com o papel clássico da mãe, para evitar rupturas e exageros. Um e outro tinham a sua função, era uma espécie de estratégia de actuação no terreno...
Caro Pinho Cardão, bem sei, bem sei, o convívio é mesmo o melhor condimento. Que tal esses enchidos???
Uma maravilha, cara Suzana, uma maravilha!...
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