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sábado, 3 de janeiro de 2009

"Zé Povinho" em crise...

Se a Fábrica de Faianças Artísticas Bordalo Pinheiro fechar, fecha-se a vitalidade de um riquíssimo património artístico que é pertença colectiva. Esquecidas e desconhecidas de muitos portugueses as vistosas “folhas de couve” de Bordalo Pinheiro deram lugar nas grandes superfícies comerciais aos serviços de mesa descartáveis que fazem as mesas portuguesas. As peças artísticas de Bordalo Pinheiro, das quais sobressai o popular “Zé Povinho”, personagem de crítica social criada pelo Artista e adoptada como personificação nacional portuguesa, aliás muito actual (ler aqui), deram lugar aos kits pseudo-decorativos que embelezam as casas portuguesas.
Não conheço a estratégia empresarial seguida pela gestão da Fábrica, mas li que se focou na exportação, tendo ficado refém de dois clientes que lhe asseguravam até agora a produção. A insuficiente diversificação de mercados e a insuficiente exploração do mercado nacional vieram ao de cima com a crise internacional. Os problemas há muito que existiam. A crise internacional apenas veio evidenciar a gravidade das dificuldades, insuficientemente resolvidas.
O grande artista Bordalo Pinheiro merecia melhor e o espólio artístico que deixou merecia não se resignar a um qualquer armazém ou museu (a ideia de museu é mera especulação minha). Não ficam certezas de que este teria que ser, mais cedo ou mais tarde, o inevitável destino. Ficam, isso sim, dúvidas se é este o melhor desfecho. De um ponto de vista estritamente empresarial parece que sim, mas olhando para os valores culturais e artísticos desta marca nacional é mais um pedaço de nós que se vai. Será que tem de ser mesmo assim? No meio da (ir)racionalidade, o coração, de vez em quando, também bate!

7 comentários:

Massano Cardoso disse...

"Cabacinha com lagarto"

Há dias, um pouco antes do Natal, tive que ir a Óbidos. Consegui tirar umas duas horas para calcorrear a vila e ver uma exposição “Bordalo Contemporâneo”. Fiquei fascinado com as peças, algumas das quais fazem parte do meu imaginário. Uma delas, uma linda cabaça com um lagarto, “chamou-me” a atenção, como quem diz: - Então não me levas? Não me achas bela?. Perguntei ao vigilante se as peças poderiam ser adquiridas. Riu-se e disse que sim. Disparei: - Guarde-me aquela cabaça com o lagarto. Vou ver o resto da exposição. E, assim fiz. No final, enquanto me dirigia para o carro, transportando com carinho e muita satisfação uma peça maravilhosa, como que a antecipar uma auto-prenda de Natal, ia pensando sobre a riqueza da nossa cultura e arte. Lá em casa havia, e há peças, já com uma certa idade, oriundas desta fábrica, que sempre admirei.
Julguei que a medida, exposição das peças “Bordalo Pinheiro”, era um sinal de vitalidade e de futuro. Longe, estava muito longe de saber que em breve iria ser noticiado o provável encerramento desta fábrica e, com ela, o desaparecimento do que é genuinamente nosso.
Adoro este género de arte e gostaria de que os meus compatriotas a reconhecessem e a acarinhassem em vez de andarem por aí a comprar umas estranhas chinesices e abomináveis peças verdadeiramente kitsch. Por que é que não ensinam e estimulam a reconhecer o valor da arte e da cultura portuguesa?
Muitas entidades gostam de oferecer peças aos seus convidados, e outros mimos, em muitas circunstâncias. Se passassem a oferecer algumas das nossas peças, talvez se evitasse o colapso da arte bordalina. E não é preciso oferecer um “Zé Povinho” ou um "clássico das Caldas", estes deveriam ser reservados para alguns promotores da “nossa” cultura. E bem os mereciam...
Quanto à “cabacinha com lagarto”, coloquei-a num local onde posso vê-la com certa frequência. Cada dia que passa gosto mais da minha peça.

Margarida Corrêa de Aguiar disse...

Caro Professor Massano Cardoso,
Todos os anos compro no Natal peças do Bordalo Pinheiro para oferecer, numa loja, a única que conheço em Lisboa, que as tem à venda com variedade de escolha.
Em Novembro passado comprei umas travessas com a forma de pinheiro para decorar a ceia de Natal. Simples mas muito bonitas. As minhas amigas gostaram imenso, julgavam até que já não se fabricavam.
De facto, não sabemos, e portanto não valorizamos, o que temos, e ficamos admirados e agradavelmente surpreendidos com tanta coisa bonita aparentemente desconhecida.
Caro Professor Massano Cardoso tem muita razão na questão que coloca: "Por que é que não ensinam e estimulam a reconhecer o valor da arte e da cultura portuguesa?" A resposta parece não ser difícil. Enveredámos por um caminho de novo "riquismo" em que os conceitos de consumo e de moderno não se compadecem com o gosto por cultivar esses valores. É falta de sensibilidade, que tão mal nos faz!
Pois guarde bem a sua "cabecinha de lagarto"...

Massano Cardoso disse...

Não é "cabecinha de lagarto"! É uma cabacinha com um lagarto...
;)

Margarida Corrêa de Aguiar disse...

Obrigada Professor Massano Cardoso por colocar o lagarto no sítio!

Ruben Correia disse...

Como caldense que sou, e com tradições familiares ligadas à (verdadeira) cerâmica das Caldas da Rainha (não confundir com a louça brejeira que infelizmente por aqui abunda, tão do agrado de certos distintos vereadores caldenses), é com enorme tristeza que assisto a todo este processo de desaparecimento de uma das mais emblemáticas fábricas da região e do País. A crise, que já se antevia à largos anos, atingiu este sector de forma provavelmente mortal, fruto em grande parte de uma enorme falta de visão dos muito bem pagos gestores/administradores dessas empresas, que não se souberem preparar para o caminho pedregoso que se avizinhava.

É pois mais uma unidade produtiva que o País perde, isto apesar dos milhões de euros gastos em "formação" para melhorar e preparar as nossas empresas, e que afinal em pouco ou nada as ajudaram. Era inevitável, muitos dirão, mas assim se pode perder mais um pouco desta nossa cada vez mais difusa identidade lusitana.

Esperemos então que seja possível salvar esta fábrica e dar um novo fôlego a esta arte, tão marcadamente caldense, e não encolher os ombros e dar vivas porque afinal já abriu mais um centro comercial na cidade, e as fábricas são coisa do passado...

Deixo também aqui o meu apreço ao dr. Massano Cardoso pela divulgação que deu à Bordalo Pinheiro, que julgo da qual muitos nunca terão ouvido falar, fruto de uma estratégia de marketing no mínimo discutível, se existente de todo (lá está, o cliente americano e o alemão é que interessavam, o nacional era simplesmente desprezado...aí têm o resultado).

antoniodosanzóis disse...

Cara Margarida
Independentemente da perda de mais uma "unidade de emprego", o que ainda me faz mais impressão e me revolta, é a passividade e a indiferença com que os nossas "poderes culturais" assistem impávidos e serenos ao desbaratar e à insolvência, são os termos, dos nossos valores artisticos, que estes sim, ainda determinam o que resta da nossa identidade como povo
diferenciado. O que se passa, paralelamente, com os nossos valores patrimoniais históricos, leia-se o semanário Expresso de ontem, é de bradar aos céus e de perguntar aos tais poderes, estou a referir-me ao governo em geral, se vale mais a Qimonda, cujo funeral daqui a uns meses é muito provável ser uma realidade, ou uma intervenção que para lá de aspectos ligados ao emprego e à gestão de recursos - estou concretamente a pensar na defesa em geral, dos tais valores culturais - defenda com acerto e propriedade o que nos resta como demonstrativo das qualidades de um povo massacrado desde sempre, salvo nalguns periodos excepcionais, com problemas de subsistência, todos eles resultantes do facto de, quanto a dirigentes, "estamos conversados". É um povo difícil que nesta perspectiva de condução dos interesses gerais tem tido pouca sorte.

Margarida Corrêa de Aguiar disse...

Caro rxc
Compreendo o seu amor à cerâmica antiga das Caldas da Rainha. Não sendo caldense, sou portuguesa e por isso choca-me ver o caminho que as coisas estão a levar.
Decidi escrever sobre a Fábrica Bordalo Pinheiro por vários motivos. Primeiro porque é elementar reconhecer a obra de Bordalo Pinheiro num momento em que a sobrevivência da Fábrica que lhe deu vida durante tantos anos está ameaçada. Depois porque é importante reflectir sobre a preservação de patrimónios culturais e artísticos que constituem marcas distintivas de Portugal cá dentro e lá fora. É matéria que, em meu entender, vai muito para além do interesse privado, estando em causa também, muitas vezes, o interesse público. E quando assim é as soluções não podem ser encontradas numa lógica puramente economicista. É possível e desejável juntar ambas as abordagens, competindo aos poderes públicos e políticos definirem medidas de enquadramento.
No meio disto tudo, há que reconhecer que são lindíssimas as peças que compõem a colecção Bordalo Pinheiro. São únicas!

Caro antoniodosanzóis
Os seus comentários vêm muito na linha das minhas preocupações quanto ao que se está a passar com a preservação do património histórico, que, em meu entender, sem uma tutela pública forte que a defenda e promova não há como fazê-lo, ainda que os privados possam estar interessados em se envolver e patrocinar.
No caso da Fábrica Bordalo Pinheiro está em causa, não apenas mais uma PME, mas um valor artístico que faz parte do património histórico. Sou sensível a tudo o que ajude a sustentar a nossa identidade, pelo que fico com muita pena que as faianças Bordalo Pinheiro desapareçam.