Após ter terminado as consultas, desci pelas escadas praticamente às escuras, porque o raio do botão da luz não funcionou, como é habitual. Ao iniciar a descida comecei a ouvir um estranho gemido, não de dor, mais semelhante a esforço, mas era um gemido muito estranho, rouco, gutural, o que me obrigou a perscrutar quem é que estaria na sua fonte. No lanço do rés-do-chão, onde a escuridão atingia o seu máximo, vi uma sombra junto aos dois elevadores. Aproximei-me e descortinei a jovem deficiente, por paralisia cerebral, que habita naquele prédio e que conheço, de vista, há muitos anos. Agarrada a um andarilho, a jovem, desesperadamente, tentava com o seu dedo indicador pressionar o botão da chamada do elevador. Gemia devido a um esforço sobre-humano para o alcançar. A ponta do dedo ficava, teimosamente, a uns escassos dois centímetros, se tanto. Tentava com todas as suas forças resolver um problema que antes conseguia, mesmo com alguma dificuldade. Desta vez, não conseguiu. Não se apercebeu da minha chegada e, muito naturalmente, sem pensar, carreguei no botão da chamada com uma facilidade louca, apesar dos muitos livros e do computador que carregava. O meu dedo cruzou-se com a da menina. Olhei-a, vi os seus olhos a brilhar num corpo disforme, silenciei os gemidos dos seus esforços e fugi. Senti-me verdadeiramente miserável. Fiquei com a sensação de que os gemidos eram agora de dor, dor silenciosa. A minha atitude, tão simples, tão fácil de executar, contrastou com o ato heroico de um ser prisioneiro de um corpo que não responde às coisas mais banais do dia, como o simples pressionar de um botão. Pus-me a pensar na dor que deverá ter sentido ao aperceber-se da facilidade com que os outros resolvem certas situações e ela não. Às tantas, se não lhe tivesse facilitado a vida, talvez tivesse conseguido pressionar o botão. Estava muito escuro e por este motivo poderia estar mal colocada. Bastaria, talvez, uma pequena mudança de posição para conseguir o seu objetivo, ou, então, não me custa nada a acreditar, a sua reduzida autonomia está a deteriorar-se rapidamente.
Queixamo-nos, frequentemente, de que somos “prisioneiros” de muitas coisas, mas na realidade somos muito mais livres e autónomos do que pensamos. Basta reconhecer a facilidade com que pressionamos o botão de chamada do elevador...
Queixamo-nos, frequentemente, de que somos “prisioneiros” de muitas coisas, mas na realidade somos muito mais livres e autónomos do que pensamos. Basta reconhecer a facilidade com que pressionamos o botão de chamada do elevador...
8 comentários:
Na verdade, caro Professor Massano Cardoso, encontramo-nos entalados entre o presente e o futuro. Os momentos que conseguimos identificar como presentes, já são passado antes de acabarmos de pensar neles. Isso é a nossa verdadeira limitação que muito frequentemente nos impede de consciencializar globalmente, racionalizando-nos o entendimento e condicionando-o muitas vezes ao préviamente estabelecido. É difícil, muito difícil equacionar qualquer situação no seu todo, em tempo real. Mesmo aqueles que, dotados de raciocínio mais ágil, de golpe de vista apurado, de capacidade de reacção mais rápida, não consegue reagir no momento, a determinada acção, sem que no momento seguinte, lhes surja uma forma diferente de responder à mesma acção.
Talvez a menina do andarilho pensasse..."afinal os anjos tambem surgem do escuro"...
até pode ser que não, Professor Salvador.
“Porque eu sou do tamanho do que vejo e não do tamanho da minha altura”
Fernando Pessoa
os meus cumprimentos
Caro Professor Massano Cardoso
A história da menina e do botão do elevador mostra bem a inutilidade e a injustiça dos nossos queixumes perante pequenas coisas que nos contrariam, quando afinal tão grandes podem ser para pessoas a quem a vida diminui ou retirou capacidades essenciais.
E mostra também o outro lado de nós, o nosso voluntarismo em ajudar nessas pequenas grandes coisas. Uma atitude quase automática que não pondera situações tão particulares como a daquela menina. Mas não tem mal!
Mais um post que nos faz parar e pensar.
Quantas meninas como esta lutam para superar as suas deficiências sem que lhes reconheçamos o heroismo?
Mais uma lição, caro Professor!...
è bom que alguém nos lembre de vez em quando como somos felizes!Gosto do comentário do caro Bartolomeu, ela pode ter sentido que apareceu alguém quando se via assim desesperada, um anjo no escuro.
Lembro-me do meu pai dizer, depois de ter ficado muito dimunuido na sua autonomia, que se sentia prisioneiro do seu corpo, na cabeça queria fazer tudo e chegar a todo o lado, sentia gosto em passear, em guiar, em consertar o que se avariava, mas as pernas não andavam, as mãos não tinham agilidade e era tudo um esforço terrível. E lembro-me bem que a certa altura ela começou a emagrecer, deixava a comida no prato ele, que sempre foi um bom garfo. Atribuimos isso ao desapego à vida, à desistência. Até que um dia reparei que ele não conseguia segurar na colher e levá-la direita à boca, metade da sopa caia e ele ficava profundamente humilhado, fazia tudo para que ninguém reparasse e, finalmente, afastava o prato e já não tentava mais. Carregar no botão do elevador, pegar na colher ou ser capaz de calçar os sapatos e sair a correr, gestos que nos fazem sentir vivos.
Vivos e, simultâneamente temerosos. Lembro-me muito bem de, em criança, notar com alguma apreensão a situação de pessoas de muita idade, limitadas na sua autonomia, a quem era necessário alimentar e fazer a higiene pessoal.
Não proliferavam nessa época os lares, existiam nas cidades principais, casas de repouso. Lugares de luxo, com a mesma função dos lares de hoje.
Mas, não se notavam queixas pela não existência desses locais. O idoso era completamente "absorvido" pelo seio familiar. Mais ou menos dependente, com maior ou menor esforço familiar, o idoso era tratado, era mantido, era acarinhado, e na maior parte dos casos falecia não raras vezes no local onde tinha nascido.
Existia a participação da família no melhor e no pior, na fortuna e na desgraça, na saúde e na doença. Cada um pertencia a um todo e esse todo assentava nos pilares erguidos por aquele que quando a vida lhe cessava cedia por herança a sua posição, porque durante a sua existência transmitira aquilo que conhecia. Por isso hoje, cara Drª. Suzana, a Senhora, assim como tantos outros, podem dizer "Lembro-me de o meu pai dizer".
...e quanto se aprendia com isso, caro Bartolomeu, embora se sofresse também, ao vê-los a definhar. Mas o que se aprendia superava sempre essa dor, parece que uma pessoa os amava de uma maneira ainda melhor, sem esperar deles mais do que sentirem-se protegidos e amparados por uma mão cheia de amor, cada minuto de vida a mais era uma grande vitória.
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