Ao folhear um jornal deparei com uma estonteante sucessão de opiniões/notícias – é cada vez mais difícil distinguir umas e outras – que assumem agora diagnósticos óbvios e críticas ferozes ao que antes louvavam e recomendavam como guia e exemplo.
É hoje quase pacífico que foi um erro as remunerações dos gestores reflectirem directamente os resultados do ano de gestão, numa lógica de causa-efeito absurda e leviana. Visto do alto desta crise, até é difícil de acreditar como é que só raras vozes ousaram falar no assunto, para logo serem abafadas pelo coro de escandalizados e modernos entendidos.
Mas a questão subsiste e está na base, nem sempre audível, das discussões em torno dos prémios de produtividade ou da quantificação dos objectivos nas avaliações de todos os grupos profissionais.
Por um lado, podemos legitimamente questionar-nos se teria sido bem aceite socialmente que essas mesmas remunerações fossem mais prudentes mas mesmo assim elevadas o suficiente para manter o estímulo e reconhecer o talento com que se contava por parte do gestor, ainda que o resultado devesse ser aguardado a mais longo prazo. Ou seja, em vez de “pagar à vista” teriam os accionistas tido a capacidade de apostar longamente nos gestores seguros mas pouco espectaculares? O mais certo é que, perante um crescimento sensato mas contínuo, os ganhos distribuídos fossem considerados pouco brilhantes e os salários dos gestores fossem mantidos injustamente baixos, avaliados pelo decepcionante curto prazo em vez de o serem pelo promissor longo prazo. Talvez fossem mesmo substituídos com impaciência, hoje ninguém tem tempo para muitas reflexões nem para aguardar resultados, seja no futebol, seja na política, seja nos negócios.
Por outro lado, com os lucros ou as estatísticas mensais a crescer (?) e as engenharias financeiras a dar conta do recado, ninguém tinha a ousadia de dizer que o rei ia nú, tal como todos aplaudiam os sucessivos planos de redução de efectivos baseados na saída maciça dos mais antigos trocados por mais novos com salários mais baixos ou mesmo só estagiários e temporários. Do mesmo modo ainda que a concorrência garantida por regras puramente objectivas levou ao afastamento de fornecedores que, podendo embora vender mais caro, eram confiáveis e fiéis aos seus clientes e não meros vendedores de produtos, sem memória nem pergaminhos. Só para falar dos exemplos mais gritantes, porque esta alucinação colectiva justificou muitos disparates, na altura baptizados de estratégias eficazes e urgentes.
O imediatismo e a lógica material invadiram tudo, não foram só as remunerações dos gestores de topo nem a distribuição do valor aos accionistas, estes serão, uma vez mais, o reflexo mais imediatamente perceptível do reinado do sucesso fácil sem visão de futuro.
Acho muito bem que se apele à ética e que se volte a colocar na cadeia de valor muitos dos valores que foram decretados como estéreis.
Mas a ponta visível deste icebergue não pode esgotar as atenções críticas nem se pode esperar que seja só por aí que se volte à normalidade. O retorno da ética não se reduz aos efeitos de curto prazo…
É hoje quase pacífico que foi um erro as remunerações dos gestores reflectirem directamente os resultados do ano de gestão, numa lógica de causa-efeito absurda e leviana. Visto do alto desta crise, até é difícil de acreditar como é que só raras vozes ousaram falar no assunto, para logo serem abafadas pelo coro de escandalizados e modernos entendidos.
Mas a questão subsiste e está na base, nem sempre audível, das discussões em torno dos prémios de produtividade ou da quantificação dos objectivos nas avaliações de todos os grupos profissionais.
Por um lado, podemos legitimamente questionar-nos se teria sido bem aceite socialmente que essas mesmas remunerações fossem mais prudentes mas mesmo assim elevadas o suficiente para manter o estímulo e reconhecer o talento com que se contava por parte do gestor, ainda que o resultado devesse ser aguardado a mais longo prazo. Ou seja, em vez de “pagar à vista” teriam os accionistas tido a capacidade de apostar longamente nos gestores seguros mas pouco espectaculares? O mais certo é que, perante um crescimento sensato mas contínuo, os ganhos distribuídos fossem considerados pouco brilhantes e os salários dos gestores fossem mantidos injustamente baixos, avaliados pelo decepcionante curto prazo em vez de o serem pelo promissor longo prazo. Talvez fossem mesmo substituídos com impaciência, hoje ninguém tem tempo para muitas reflexões nem para aguardar resultados, seja no futebol, seja na política, seja nos negócios.
Por outro lado, com os lucros ou as estatísticas mensais a crescer (?) e as engenharias financeiras a dar conta do recado, ninguém tinha a ousadia de dizer que o rei ia nú, tal como todos aplaudiam os sucessivos planos de redução de efectivos baseados na saída maciça dos mais antigos trocados por mais novos com salários mais baixos ou mesmo só estagiários e temporários. Do mesmo modo ainda que a concorrência garantida por regras puramente objectivas levou ao afastamento de fornecedores que, podendo embora vender mais caro, eram confiáveis e fiéis aos seus clientes e não meros vendedores de produtos, sem memória nem pergaminhos. Só para falar dos exemplos mais gritantes, porque esta alucinação colectiva justificou muitos disparates, na altura baptizados de estratégias eficazes e urgentes.
O imediatismo e a lógica material invadiram tudo, não foram só as remunerações dos gestores de topo nem a distribuição do valor aos accionistas, estes serão, uma vez mais, o reflexo mais imediatamente perceptível do reinado do sucesso fácil sem visão de futuro.
Acho muito bem que se apele à ética e que se volte a colocar na cadeia de valor muitos dos valores que foram decretados como estéreis.
Mas a ponta visível deste icebergue não pode esgotar as atenções críticas nem se pode esperar que seja só por aí que se volte à normalidade. O retorno da ética não se reduz aos efeitos de curto prazo…
5 comentários:
Excelente texto, cara Drªa Suzana, brilhante.
O dinheiro corrompe muito, conseguindo até corromper tudo o que não foi corruptível, por ter ficado à margem, por ter conseguido resistir ou "safar-se" à absorção.
Gosto especialmente da frase com que termina «Acho muito bem que se apele à ética e que se volte a colocar na cadeia de valor muitos dos valores que foram decretados como estéreis.»
De momento, sinto que a consciência empresarial e financeira, não interiorizou ainda completamente esta definição, como sendo a forma eficaz para que as economias se recomponham. Temo que sobretudo os maiores, persistam no erro que fez desmoronar todo o sistema e que as mudanças de atitude que são cada dia mais urgentes, tardem em ser adoptadas.
De acordo, Suzana. Só que a ética não é um precipitado de valores perenes, antes é cada vez mais o produto das conjunturas.
Enquanto a conjuntura proporcionou condições favoráveis ao crescimento, ninguém protestava que numa empresa privada os seus gestores fossem remunerados em razão do valor que acumulavam para os accionistas. O êxito dos gestores media-se pelo êxito das empresas que administravam e achava-se natural que tomassem parte na distribuição dos proveitos dos sucessos no mercado. Chamava-se então a isso remumerar a competência e o mérito.
Só que o mérito e a competência são conceitos distintos quando entendidos sincronica ou diacronicamente...
A questão não é intemporal. Coloca-se agora. E é natural que se coloque, nesta conjuntura em que, por um lado, com a pulverização do capital das grandes emppresas, os accionistas não são meia dúzia de capitalistas que premeiam quem os premeia com a geração de lucros, são cidadãos remediados que apostaram as suas poupanças na esperança que os mercado lhas devolva com alguma acessão; e por outro, quando todos nós contribuimos para o enorme esforço de compensar com impostos os efeitos desastrosos de agumas opções de gestão.
Mas vai ver que mudam os tempos (oxalá!), e com eles mudam as vontades. A ética voltará, então, a ser o que era...
Cara Dra. Suzana Toscano:
A crise económica e financeira trouxe para os dias de hoje questões de ética que antes, por ausência de motivo não se punham, ou apenas se punham a certos grupos profissionais de elite. Hoje vemos com clareza que foi ( é ?) uma asneira completa atribuir remunerações de acordo com os resultados do ano. O desejável é que essas remunerações tivessem sido atribuídas de forma sustentável, e não, pelas tais engenharias financeiras que conduziram a actual situação. Todos estivemos no mesmo barco mas ninguém se atreveu a levantar questões pela simples razão de que, simplesmente, não existiam, à luz dos cânones da altura… Claro que agora é fácil vir emitir opiniões, tecer grandes raciocínios sobre as causas e os efeitos…
Para terminar permita-me dizer que considero o tema deste post muito oportuno, e o comentário “distante” do caro Drº Ferreira de Almeida, brilhante, pela ajuda que dá para uma melhor reflexão sobre toda esta situação.
Recentemente o insuspeito Economist considerou que a velha máxima, ensinada em tantas e tantas escolas de gestão e doutrina máxima nas empresas "maximização do valor accionista é o objectivo primário da empresa" é um principio anti-social.
Chocados? talvez não. Talvez porque mesmo os grandes defensores do liberalismo económico estejam a realizar que mais que uma crise económica ou financeira, o que vivemos estruturalmente é uma crise de valores. E que apesar de tudo, a máquina do capitalismo precisa desses valores para ser "sustentável".
Apesar das inúmeras explicações que têm surgido para o descalabro financeiro, talvez a melhor que encontrei é a mais simples: era demasiado conveniente para uma minoria no comando dos centros de poder empresarial e institucional fingir que nada se passava, enquanto a maioria da população era vergonhosamente engajada na ilusão de um mundo sustentado por fluxos de credito infinito. Não há muito tempo, mas agora há muito tempo, Alan Greenspan afirmou publicamente que seria admissível arriscar uma crise que poderia colapsar as economias de muitos países do mundo se tal fosse o preço da inovação financeira no sector do crédito que geraria uma nova era da indústria. Talvez por isso, o principal problema para restaurar a confiança seja a constatação de que os responsáveis ainda estão ao volante.
Cara Suzana:
É o preço de se esquecerem valores éticos. O seu esquecimento e abandono, na área empresarial, não é mais grave do que tem acontecido nos restantes sectores da sociedade. Só que, naquele caso, esse abandono se traduziu em prejuízos materiais evidentes.
Gestores, accionistas, analistas, empresas de ratig, auditores, supervisores e reguladores, todos tiveram culpa. Os accionistas sabiam perfeitamente que os lucros supranormais eram ilusórios, mas viam o valor das acções subir e os dividendos a crescer, pelo recompensavam os gestores, que produziam a ilusão. Os analistas exigiam resultados crescentes, sob pena de baixarem as notações. Os supervisores, reguladores e empresas de rating e auditores não se debruçavam sobre os produtos e só davam atenção à superestrutura contabilística. Os gestores, assim tornados impunes, davam roda livre a produtos de risco cada vez mais acrescido e cada vez mais rentáveis. Todos, no fundo, conheciam o problema e todos, no fundo, o ignoraram. E muitos, para além de comportamentos não éticos, tiveram comportamentos criminosos. Estes merecem a cadeia, como os que derivam da falta de ética também a mereceriam, mas esses não podem ser punidos um estado de direito.
Só conjungando ética e lei a humanidade progredirá. Porque a lei nem tudo pode prever. Mas não têm qualquer autoridade para falar e reclamar e exigir todos aqueles, e foram muitos, que nos jornais, nos livros, nos comportamentos, vinham objectivamente apoiando todos aqueles que diziam que a ética não pagava o pequeno-almoço.
Está-se a ver o resultado.
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