Escolhi de propósito um comboio mais tardio para regressar a casa. Já não me apetece andar a correr atrás do tempo, gosto de o aprisionar sempre que posso, calcorreando a baixa lisboeta sem outro objetivo que não seja misturar-me com a multidão, olhar para as mesmas montras sem as ver, cheirar a luminosidade da cidade, andar a pé, a imaginar outras épocas e eras que encheram a cabeça de muitos antepassados e que arquitetaram a nossa identidade. Sempre tudo igual, mas sempre diferente e cada vez mais bonita. Descubro sempre novos pormenores. Enquanto ia espairecendo com a paisagem urbana, tentando apagar as notícias de sabujice, de medo, de intimidação e de sinais antidemocráticos que começam a assolar a nossa sociedade, e que me preocupam sobremaneira, eis que de repente, ao aproximar-me de Santa Apolónia, vejo um carro da polícia a estacionar com “estilo nova-iorquino” à frente de uma esquadra. Saíram apressadamente três jovens polícias e uma pobre alma. Parei e olhei para ver quem era. Um maltrapilho com um barrete enfiado até às orelhas, fácies encardida e a coxear. A mão esquerda, deformada e sem vida, devia sentir inveja da dextra que agitava com um vigor meio febril um miserável saco. Caminhava penosamente à frente dos agentes. A meio do curto trajeto, sem manifestar qualquer receio, vociferou: - Oh Chefe! Eu já vou aí! Cá estou eu mais uma vez! Olhei para o busto de D. Manuel I, que se deve divertir com estes episódios tão ao seu gosto folião, e prossegui na minha marcha tentando questionar o que é que o pobre homem teria feito. Teria medo? Qualquer quê! Sentir-se-ia intimidado pela situação? Nem pensar. Aqui está, afinal, uma prova de que o medo não existe na sociedade portuguesa.
Na estação vários pombos atrevidos olhavam com sobranceria à espera de receber algumas migalhas. Paravam, olhavam e movimentavam a cabeça de forma pendular. Um deles, chamou-me a atenção. Caminhava de forma estranha. Coxeava. Um pombo a coxear? Foi então que vi que tinha uma malformação na pata direita. Ao andar não pendulava a cabeça, tinha que parar frequentemente, levantava a pata doente, dava a sensação de que ia sentar-se na cauda, era o mais calmo e não aparentava qualquer receio. Curiosamente era muito mais desenvolvido do que os outros. O tipo deu-me a sensação de que se aproveitava do aleijão para granjear migalhas, ao aproximar-se à vontade, ficando ali, à minha frente, cais não cais, à espera de qualquer coisita, mas sem aquela altivez que os seus companheiros atrevidos revelavam. O bicho sabe da poda! E foi o que conseguiu comer alguma coisa. Uma passageira deu-lhe um pouco de pão. Assim que catrapiscou o alimento, levantou voo com requintada elegância, quase que não batendo as asas. No ar, a sua malformação desapareceu, era um verdadeiro príncipe. Lembrei-me do pobre do maltrapilho, um coxo de uma sociedade esquisita, à espera de um dia vir a ser também um príncipe, mas só quando levantar voo de vez...
Na estação vários pombos atrevidos olhavam com sobranceria à espera de receber algumas migalhas. Paravam, olhavam e movimentavam a cabeça de forma pendular. Um deles, chamou-me a atenção. Caminhava de forma estranha. Coxeava. Um pombo a coxear? Foi então que vi que tinha uma malformação na pata direita. Ao andar não pendulava a cabeça, tinha que parar frequentemente, levantava a pata doente, dava a sensação de que ia sentar-se na cauda, era o mais calmo e não aparentava qualquer receio. Curiosamente era muito mais desenvolvido do que os outros. O tipo deu-me a sensação de que se aproveitava do aleijão para granjear migalhas, ao aproximar-se à vontade, ficando ali, à minha frente, cais não cais, à espera de qualquer coisita, mas sem aquela altivez que os seus companheiros atrevidos revelavam. O bicho sabe da poda! E foi o que conseguiu comer alguma coisa. Uma passageira deu-lhe um pouco de pão. Assim que catrapiscou o alimento, levantou voo com requintada elegância, quase que não batendo as asas. No ar, a sua malformação desapareceu, era um verdadeiro príncipe. Lembrei-me do pobre do maltrapilho, um coxo de uma sociedade esquisita, à espera de um dia vir a ser também um príncipe, mas só quando levantar voo de vez...
2 comentários:
Creio que não longe de Santa Apolónia e do largo do "Pombo Manco", se localiza a rua António da Silveira.
Este nome pertence a um Capitão da praça de Diu que pelos idos de 1538 viu a praça que defendia, sitiada por Suleimão Paxá (este não era aparentado com o elefante de Viena), um eunuco que havia tomado o poder. Suleimão, ou Paxá para os amigos, cercou Diu com 70 galés turcas e um exército de 23.000 homens (seríam?. António da Silveira, defendia a sua praça com apenas 600 Portugueses.
Suleimão, enviou então a Silveira, uma carta insultuosa, comparando-o e aos seus homens a gado encurralado. António da Silveira enviou-lhe a seguinte resposta: "Fica a saber que aqui estão portugueses acostumados a matar muitos mouros e têm por capitão António da Silveira, que tem um par de tomates mais fortes que as balas dos teus canhões e que todos os portugueses aqui têm tomates e não temem quem os não tenha!".
Após meses de lutas incessantes e a perda de milhares de homens, o turco desistiu do cerco, considerando os portugueses invencíveis. Entre os mortos e feridos do ladoportuguês, já so havia 40 guerreiros capazes de lutar quando o exército inimigo se retirou.
Ficamos assim a saber que não é uma perna defeituosa que impede um pombo de içar-se pelos ares, basta-lhe um par de asas fortes e... tomates.
;)))
Bons voos caro Professor!!!
Belo texto, a fazer-nos passear devagarinho pelos quadros vivos de uma rua de Lisboa, incluindo os pombos, que também têm as suas artes para lutar contra a adversidade...
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