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sábado, 27 de março de 2010

Perpetuar a memória dos ainda vivos.

Podemos ir a certos lugares com pretexto ou sem pretexto. Mas sem pretexto começa a ser um pouco mais complicado, devido à falta de tempo misturada com uma certa dose de preguiça.
Mafra sempre me atraiu, por mil e um motivos. O mais velho de todos foi uma construção da cartolina que, em miúdo, vi na casa de um vizinho que se entretinha a construir monumentos. Recordo de um outro, porque era o que gostava mais, a Torre de Belém. Depois fui adicionando uns atrás de outros, graças à história, às estórias dos militares que iam para aquelas bandas fazer a recruta e, mais recentemente, à literatura.
Mal sabia eu que um dia iria a Mafra graças a um partido político. Antes, já tinha equacionado, por mais de uma vez, tirar uma tarde lisboeta que costumo desfrutar quando vou em serviço académico ao permanecer um dia para outro. Não foi preciso. Colocaram-me à cabeça de uma lista de delegados e marchei, na data aprazada, para o local.
Cheguei numa manhã de sol, embora muito fria. Passei em frente do convento, o qual, à primeira vista, me encheu as medidas, embora esperasse que fosse um pouco mais largo. Recordei o velho convento de cartolina.
O congresso realizava-se num avantajado e moderno parque desportivo. À entrada, letras gigantes descreviam o lugar e um nome, Parque Desportivo Municipal Eng. Ministro dos Santos. Quem terá sido este senhor? Pensei. Algum benemérito, alguma figura que a terra decidiu “perpetuar” por feitos, com toda a certeza. Só assim se compreende, atribuir o nome de alguém para que os vindouros não se esqueçam do passado, do valor e obras de personalidades que merecem ser conhecidas para além do seu tempo. Aceito estas práticas com naturalidade. Mas, afinal, o homem ainda estava vivo e falou no decurso do congresso. Era o presidente da Câmara! Caramba. É preciso descaramento atribuir ou deixar que atribuíssem o seu nome em circunstâncias desta natureza. Não é caso único. É uma prática, pelos vistos, muito comum, sobretudo em autarcas que, assim, se vão “libertando da lei da morte”. Tiques de auto estima e de vaidade sem limites que não lhes fica nada bem.
Quando vou por esse país fora tropeço em situações que me chamam a atenção, quando me deparo com nomes que desconheço. De quem é aquele busto? E aquela estátua? Dizem-me que são pessoas da terra que já morreram e que foram excelentes pessoas. A seguir debitam um reportório de virtudes, sobretudo se tiveram algum relacionamento pessoal ou lhes foram transmitidas pelos pais e avós. Outros, entreolham-se, levantam os ombros, fazem descair os cantos dos lábios e ficam por ai.
A morte, quando se lembra de apoucar a vida, faz nascer, quase de imediato, um estranho filtro que só deixa passar as virtudes, travando os defeitos. Os vivos olham para essa estranha parede, tentando ver o que está do outro lado. E não é que começam a ver que afinal se tratava mesmo de uma boa pessoa? Ainda tentam deslumbrar alguns dos seus defeitos. São poucos os que conseguem ver algumas dessas sombras, talvez por representarem acontecimentos muito duros e que os marcaram a ferro e fogo. Mas esses, com o tempo, transformam-se em míopes.
O desejo dos homens, que querem perpetuar-se através dos tempos, é pura ilusão. Voltando aos autarcas, que se comportam como fracas réplicas dos imperadores romanos, as suas lembranças caem no caixote do esquecimento à medida que o tempo passa, e como passa depressa, em breve, os seus nomes servirão apenas para designar uma qualquer rua para que os pobres e ingratos cidadãos possam receber avisos de cobrança, recibos para pagamento da água ou da luz, uma notificação do tribunal, uma multa de estacionamento, sim, porque já não recebem cartas de amor. Se lhes perguntarmos quem foi o senhor, ou a senhora, cujo nome está gravado na placa ao início da rua, ou de quem é o busto que ornamenta um recanto de um qualquer jardim, dizem que não sabem e nem mostram qualquer interesse em saber. Para quê? A perpetuação dos nomes é uma mera ilusão à procura do natural e desejável silêncio que, mais tarde ou mais cedo, irá ocupar o lugar de onde nunca deveria ter saído, o estranho mas natural esquecimento.
Agora querem propor e aprovar uma lei para que não sejam atribuídos nomes às ruas, a equipamentos sociais e culturais, ou que se façam estátuas, bustos ou quaisquer outras homenagens com dinheiros públicos a pessoas vivas. Quando se olha para um desses “monumentos”, os homenageados vivos são vistos de forma nua e crua sem a ajuda de um filtro, o tal que só deixa passar e visualizar aquilo que a morte deixa e impõe. Impõe, porque através do filtro seletivo nunca se sabe que tormentos ou malfeitorias os poderes ocultos dos mortos são capazes e o melhor é não vê-los ou fingir que não se veem, o que vai dar ao mesmo. Também será uma forma de evitar que alguns vejam os seus nomes retirados de certos locais por estarem apenas vivos. O melhor é deixar para “depois” a resolução destes assuntos que mexem com a perpetuidade efémera da glória humana.

1 comentário:

Marisa Cavaleiro disse...

por exemplo, sr. Prof. doutor o Centro de Artes e espectáculos dr. Pedro Santana Lopes na Figueira da Foz