"Porque quase tudo se concentra num resumo sem grande importância, depois de ter parecido que justificava canseiras demoradas, debates prolongados, vigílias de angústia, pontos finais. Nisso se gasta a maior parte daquilo que chamam o nosso tempo, e que é simplesmente a nossa vida, porque é em unidades de vida que o tempo se mede. Entretanto, descura-se o essencial nos nadas a que não sabemos quem nos obriga".
Adriano Moreira , "A Espuma do Tempo Memórias do Tempo de Vésperas"
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Tenho andado a pensar nisto, como é que se conta uma vida? A questão surgiu-me porque irei em breve reencontrar uns amigos que conheci há mais de vinte anos e com quem convivi de perto durante um ano, quando vivi fora do País. Mas a distância e a vida de cada um de nós não permitiu que voltássemos a ver-nos, embora nunca se tivesse quebrado o hábito de um telefonema de quando em quando, o postal no Natal, os parabéns nos anos e sempre, mas sempre, os votos de um reencontro. Na altura as nossas filhas eram pequenas, as deles tinham a mesma idade, vivíamos no mesmo prédio e enfrentámos juntos as atribulações da adaptação à vida na América, nós vindos deste cantinho perdido na Europa, eles vindos de um País que era maravilhoso antes de ser destruído por uma terrível e interminável guerra, o Líbano.
Apesar de sermos tão distantes no Globo tínhamos uma vida parecida, uma mesma maneira de olhar os problemas, de educar os filhos e muitas e muitas vezes resolvemos juntos as dúvidas e as angústias que nos assolavam. Eu e ela, sobretudo, partilhámos de perto a integração das crianças na mesma escola, aprendemos os segredos da vida no bairro, ocupávamos as horas livres a conversar ou a desvendar a cidade que nos acolhia, a mim transitoriamente, a ela num novo rumo de vida que sempre pensou que seria para sempre. Ainda me lembro bem do dia em que íamos tranquilamente na rua e se ouviu um estrondo enorme, por um incidente qualquer, e ela ficou lívida, paralisada de horror, chamava-a e não respondia, de repente transportada para Beirute, as bombas, o impulso entre abrigar-se ou fugir. Foi a primeira vez que percebi o que era o medo a sério.
Mandaram-me há meses uma fotografia da neta e reparei então que já decorreu quase uma vida inteira desde que nos separámos, vamos sentar-nos numa casa que eu não conheço embora ainda os imagine na sala de dantes, com as coisas que tinham ganho o seu lugar à medida que iam abrindo os caixotes chegados de longe. Ela explicava-me que a carpete ali parecia pequena, que o espelho estava por cima de outro móvel, que a mesa ficava acanhada, tudo era pensado por referência a um mundo que deixara para trás, as coisas também ganham uma vida própria e depois teimam em não aceitar os novos espaços que lhes destinamos.
Penso como será possível escolher o mais importante de todos estes anos, passo em revista todos os factos e percebo que o mais importante é difícil de contar, não é o que aconteceu mas o que foi acontecendo, como se viveu e não o que se viveu. Lembro-me de um jogo que as minhas filhas faziam nos escuteiros que era descreverem-se sem recorrer a nenhum facto concreto que as situasse numa família, numa terra, numa escola, num meio social. Tinham que aprender a “traduzir-se” pelo seu sentir, pelo que preferiam, pelo que recusavam, de modo a que os outros pudessem então interpretar, decifrar as suas influências e concluir assim que tipo de pessoa é que afinal eram.
Um exercício difícil mas de uma sinceridade exigente, longe de atavios ou de rótulos que abreviam juízos e servem de muleta, ocultando tantas vezes a verdadeira essência da pessoa. Ao fim de vinte anos, uma conversa entre pessoas que mantiveram preso o laço da amizade merece o esforço de que se fale sobretudo do essencial, do que ficou de cada um de nós depois de vividos os anos centrais da nossa vida de adultos.
E, a pensar nisso, é como se já tivesse começado a minha viagem até casa deles.
Mandaram-me há meses uma fotografia da neta e reparei então que já decorreu quase uma vida inteira desde que nos separámos, vamos sentar-nos numa casa que eu não conheço embora ainda os imagine na sala de dantes, com as coisas que tinham ganho o seu lugar à medida que iam abrindo os caixotes chegados de longe. Ela explicava-me que a carpete ali parecia pequena, que o espelho estava por cima de outro móvel, que a mesa ficava acanhada, tudo era pensado por referência a um mundo que deixara para trás, as coisas também ganham uma vida própria e depois teimam em não aceitar os novos espaços que lhes destinamos.
Penso como será possível escolher o mais importante de todos estes anos, passo em revista todos os factos e percebo que o mais importante é difícil de contar, não é o que aconteceu mas o que foi acontecendo, como se viveu e não o que se viveu. Lembro-me de um jogo que as minhas filhas faziam nos escuteiros que era descreverem-se sem recorrer a nenhum facto concreto que as situasse numa família, numa terra, numa escola, num meio social. Tinham que aprender a “traduzir-se” pelo seu sentir, pelo que preferiam, pelo que recusavam, de modo a que os outros pudessem então interpretar, decifrar as suas influências e concluir assim que tipo de pessoa é que afinal eram.
Um exercício difícil mas de uma sinceridade exigente, longe de atavios ou de rótulos que abreviam juízos e servem de muleta, ocultando tantas vezes a verdadeira essência da pessoa. Ao fim de vinte anos, uma conversa entre pessoas que mantiveram preso o laço da amizade merece o esforço de que se fale sobretudo do essencial, do que ficou de cada um de nós depois de vividos os anos centrais da nossa vida de adultos.
E, a pensar nisso, é como se já tivesse começado a minha viagem até casa deles.
8 comentários:
Quando se fazem grandes amizades – aquelas amizades que nascem ao primeiro encontro – nunca a distância porá fim. Bom reencontro.
«reparei então que já decorreu quase uma vida inteira»
Não! Permita-me, cara Drª Suzana: Aquilo que reparou, ao ver a fotografia da neta que o casal seu amigo lhe enviou, foi que decorreram várias vidas em simultâneo e que novas vidas surgiram.
Um milagre que a todos continua a surpreender, apesar de universalmente natural.
Não tema o reencontro, cara Drª. A Senhora é uma excelente comunicadora e dotada de uma imensa sensibilidade. Foram essas características que a fizeram aproximar e tornar-se amiga desse casal Libanês. Confie. A alegria do reencontro será imensa e, o(s) assuntos de conversa, fluirão naturalmente.
O problema irá ser, quando chegar a hora inevitável do regresso.
Eles, não vão querer devolvê-los e vocês, vão querer trazê-los. Ficará a incerteza angustiante, se irão voltar a encontrar-se...
Mas, é assim a vida dos seres humanos, recheados de sentimentos e, o coração e a memória servem para manter vivos os momentos e as pessoas que nos são queridas.
Pois é, Suzana, como é que se conta uma vida? Havendo pouco tempo é um exercício difícil para não ser igual a tantas outras vidas. Com um pouco mais de tempo, fará toda a diferença o modo como será contada a vida e todas as vidas que a compõem. Serão as emoções e os sentimentos vividos colocados na voz, no olhar e nos gestos que permitirão contar as histórias como se fossem hoje vividas. Será uma espécie de um "diário" falado. Como a Suzana é uma pessoa muito comunicativa e muito sensível aos "pormenores" da vida, quer-me parecer que vai precisar de muitos dias para ir conversando, e também escutando, as vidas de um lado e de outro.
A propósito de contar a vida, ouvi há uns tempos uma entrevista com uma senhora que decidiu escrever um livro da sua vida para deixar aos netos. A senhora tinha a vida para contar mas pouca veia literária, confessava, para a escrever e na escrita reflectir as emoções e sentimentos vividos. Contratou uma empresa que presta este tipo de serviços. Fiquei admirada, pois não tinha ideia da existência destes serviços. Mas achei o projecto extraordinário.
A Suzana tem tudo. A vida e o resto, que é muito, para a voltar a viver...
tem o nome de minha irmã.
leio sempre os seus textos sem comentários
gostava que visitasse o meu blogue
viático de vagamundo
http://www.viticodevagamundo.blogspot.com
saúde e fraternidade
Obrigada Catarina, cá estarei depois a dar notícias :)
Caro Bartolomeu, está mesmo muito bem visto, são várias vidas as que percorremos, é difícil falar d enós sem falar dos outros, dos que nos acompanham, dos que já morreram e dos que nascem e que também são nossos, deixando-nos entrar um bocadinho, através do que lhes ensinamos, na vida que seguirá depois do nosso tempo.
Margarida, que lindo comentário e essa referência ao diário falado. É engraçado, já me aconteceu várias vezes, que há pessoas que nos agradam quase de repente, com quem se estabelecem laços e que resistem ao tempo, mesmo quando há um longo afastamento, quando nos reencontramos parece que sempre estivémos próximo, nesses casos o "diário falado" é fácil, basta "continuar a conversa" porque tudo se ajusta com toda a facilidade.Mas nunca me tinha acontecido uma ausência tão grande e tão distante, ao telefone e em poucos minutos só chega para dizer que está tudo bem e o que foi evoluindo. Além disso há uma expectativa mútua, como é que cada um foi capaz de cumprir os seus sonhos? Vamos desiludir-nos ou vamos encontrar a antiga chama que nos fazia acreditar que ía ser possível mudar o mundo? De certo modo, é uma viagem no tempo mas na vida real.
Cara floribundus, volte sempre, já fui espreitar ao seu blogue, que lindas imagens, deve dar-lhe muito trabalho fazer pesquisa e anotar factos tão curiosos da história.E obrigada pelas visitas, esperamos que continue a gostar.Cumprimentos à minha homónima!
Curto bué oferecer coisas às pessoas, é um vício que herdei...
Assim, ofereço-lhe, cara Drª. Suzana este clip de Rod Stewart, que considero um hino à amizade e ao desejo de atravessar distâncias, para rever a quem gostamos.
http://www.youtube.com/watch?v=Bpbuqh12oj4
"can you ear me thru the dark night?"
Quando a amizade é forte, sincera e leal, podemos ouvir-nos através das mais violentas tempestades!
Desejo-lhe uma excelente viagem, cara Drª. Suzana.
;)
Uma vida pode contar-se entre a melodia do velho fado do António Mourão "ó tempo volta para trás", ou mesmo até com a musica popularucha "pelos caminhos de Portugal".Ou ainda com a leitura de uma parte do poema de Jorge de Sena- Ode para o Futuro:
Falareis de nós como de um sonho.
Crepúsculo dourado. Frases calmas.
Gestos vagarosos. Música suave.
Pensamento arguto. Subtis sorrisos.
Paisagens deslizando na distância.
Éramos livres. Falávamos, sabíamos,
e amávamos serena e docemente.
Fica-me a convicção que este escrito da Susana está a meio caminho da esperança de um bom futuro e da convicção que "o céu pode esperar".
Gostei de ler.E recordar o mesmo exercicio que a minha filha tambem fez no mesmo agrupamento de escuteiros.
Afinal para viajar na distancia do tempo basta apenas dar um passinho amigo.
FVRoxo
Obrigada caro bartolomeu, adorei o presente, vem mesmo a propósito!
Caro Francisco, o ó tempo volta pra trás não me seduz mesmo nada,como dizia o meu avô "quem já andou não tem para andar" e gosto dessa certeza do que já foi vivido. Mas o poema de Jorge de Sena é lindissimo, já o adoptei para a viagem :)
è engraçado que também se lembre desse jogo dos escuteiros, os pais também fizeram a sua recruta :)
Abraço amigo
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