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quarta-feira, 29 de junho de 2011

"Falidos"

Nem é preciso abrir o jornal, a primeira página noticia que milhares de famílias já entraram em falência. Não são só as empresas a entrar em falência, as famílias e os países também entram ou vão a caminho. Falir é um verbo que domina os nossos tempos, mas se virmos bem dominou sempre. A nossa espécie é muito sui generis; teimosamente não desaparece, pelo menos por enquanto, mas para lá caminha se não tiver cuidado, e sabe entrar em falência como nenhuma outra. Poderão contrapor que às outras não se pode aplicar este termo; correto, mas não deixam de ter um termo semelhante, mais nobre, extinção. Não estão com meias palavras, sobrevivem ou desaparecem, a nossa, não, construiu um substituto, falência. Falência a todos os níveis, económico, social, político e de valores.
Nunca me tinha passado pela cabeça que havia pessoas capazes de entregar os seus filhos adolescentes problemáticos, porque não conseguem fazer nada deles, ou mesmo criancinhas, a instituições, com o argumento de que não podem cuidar delas. Onde é que isto acontece? Em Portugal. Pobres crianças. Mas afinal o que é que as crianças têm a ganhar com isto? Nada ou muito pouco. Sofrem? É evidente que sim.
Nunca compreendi por que razão as crianças tem de sofrer; quanto aos adultos a conversa pia mais fino.
A leitura recente de uma história pessoal, contada por um escritor bósnio-americano, atingiu-me violentamente. Aleksandar Hemon, pai de duas filhas, confrontou-se com uma doença grave, hidrocefalia devida a tumor cerebral raro, que atingiu a mais nova, aos nove meses. Hemon descreve a situação, que durou pouco mais de cem dias até à morte da pequena, com pormenores e sentimentos que não permitem esquecer a quem a tenha lido. Li a história no fim de semana, e como me perturbou imenso tenho que escrever para ver se consigo aliviar a angústia. Conta o pai que, durante esta fase, a filha mais velha com três anos, apercebendo-se do que se estava a passar, desenvolveu muito rapidamente a linguagem, revelando uma capacidade narrativa extraordinária. O escritor interpreta este achado como uma manifestação evolutiva em termos de sobrevivência, ou seja, narrar ou ficcionar são formas indispensáveis à sobrevivência da nossa espécie, justificando assim a criatividade artística e a necessidade de passarmos a vida a contar histórias. Escrever, narrar, poetizar são, pois, formas de combater a falência do ser humano. Uma boa razão para justificar a nossa existência, já que as promessas religiosas não passam de falácias. Dizem os religiosos que o sofrimento enobrece, é fonte de iluminação ou de salvação. Sendo assim, como é que o sofrimento de uma criança é útil para ela? E no caso de morrer como é que beneficia? E nós? E o mundo? Nada. Não adquirimos nada que possa beneficiar quem quer que seja, porque se assim fosse, seriamos neste momento outra espécie, muita mais evoluída, decorridos que são centenas de milhares de anos de dor e sofrimento. Mas voltando ao próprio, à criança que sofre e que morre, será que ela ascende a um local melhor? Qual quê! Neste aspeto partilho da opinião de Hemon, haverá melhor lugar para a criança do que a casa e a família? Claro que não. Paraísos e céus perdidos não me encantam, são espaços e promessas vãs que nunca conseguirão preencher o vazio da saudade.
O que me surpreende são os pais que depositam os filhos nas mãos das instituições como se fossem as chaves de um carro ou de uma casa cujos compromissos não conseguem cumprir. Uma espécie falida, em toda a extensão, resta-nos alguns belos momentos de poesia ou de prosa que nos ajudam a sobreviver. O que seria de nós se deixássemos de cultivar estes aspetos? Às tantas deixaríamos de ter de justificar o verbo falir.

3 comentários:

Anthrax disse...

Entregar as crianças a instituições onde é que acontece?

Na Finlândia.

Aconteceu com a prima do meu marido. O pai não quis ficar com a miúda, a mãe preferia a companhia das garrafas, então entregaram-na a ela e ao irmão ao Estado e eles (os pais) lá andam na sua vidinha. Confesso que me faz alguma confusão este modelo :S... ainda para mais porque o Estado, agora, resolveu colocar os miúdos para adopção.

Além disso, os progenitores podem abdicar dos seus direitos sobre os filhos (que também acontece com frequência), o que significa - por exemplo - em caso de separação quem abdica dos direitos sobre os filhos não tem qualquer obrigação legal de pagar uma pensão de alimentos. Mas também não pode ter qualquer contacto com os filhos.

A sério, este modelo é muito estranho. Nós podemos ter as nossas coisas, mas não somos assim.

Bartolomeu disse...

Nem de propósito, Caro Professor... ha dias, encontrava-me sentado à mesa de um café e distraídamente detive o olhar numa jovem mulher, bonita e elegante, que de pé, ao balcão, saboreava um bolo que acompanhava com um café. Passados alguns momentos, dei comigo a imaginar o corpo daquela mulher, por baixo da pele. Vi-lhe distintamente toda a estructura muscular, em seguida a óssea, até que cheguei aos órgãos internos, passeei demoradamente pelas vísceras da mulher, e súbitamente, veio-me à mente o tema do Sérgio Godinho «Que força é essa, que força é essa, que trazes nos braços, que força é essa, amigo?»
É verdade; não damos por ela, mas habita em nós uma força anímica que nos sustem, que nos faz existir, independentemente dos aires e dos desaires que preencham as nossas existências.
E cismei... se o corpo desta mulher, é constituído por órgãos, por massa óssea e muscular, por tecidos cutâneos, de onde lhe vem essa força que o mantem erecto? De onde lhe vem esse ânimo que o impele a lutar, a transgredir, a superar as forças que lhe são exteriores e tantas vezes tentam derruba-lo, aniquila-lo...

Paula disse...

O Homem não nasceu para sofrer, porém, existem certas situações na vida que não podemos fugir, como o nascimento, a doença, a velhice e a morte.
Somos ocidentais e nascemos num país católico, por isso somos padronizados por uma moral religiosa específica, se tivéssemos nascido num outro país, como, por exemplo, India, Japão, Laos, etc., a nossa realidade espiritual seria completamente diferente e as nossas certezas seriam tão válidas como as que possuímos neste canto do Mundo. Concordo com os seus sentimentos e também me aflijo com estas históricas dramáticas ao mesmo tempo que me maravilho com o poder de reacção do ser humano, neste caso da menina de três anos, que face a uma situação tão dramática desenvolveu de forma tão positiva as suas capacidades de comunicação.