Recordo ter assistido ao vivo a alguns debates mais acalorados em que os protagonistas não escondiam os seus estados de alma, traduzidos nas feições irritadas, nas vozes ameaçadoras e ruidosas, em movimentos corporais eivados de tremeliques patéticos e, sobretudo, no uso de certas expressões, muitas do foro médico e psiquiátrico, “o senhor é um autista”, “o senhor fez um discurso esquizofrénico”. Ao “autismo” de um ou à “esquizofrenia” do outro, formas políticas de insulto, associavam a de palhaço, que, não sendo do domínio clínico, é também muito apetecível no hemiciclo e reuniões das comissões. O que vale é que os palhaços, os verdadeiros palhaços, não se incomodam minimamente com isso, penso eu, porque nunca ouvi qualquer associação de tão nobre atividade vir a terreiro contestar o uso inapropriado da sua profissão como sinónimo de insulto. Fazem bem, mostrando que são superiores a esses “gajos” e a essas “gajas”. É assim que temos de falar, não é verdade, enunciando os dois géneros? No entanto, na altura, registei com algum apreço a denúncia de alguns pais e mães quanto ao uso e abuso da palavra “autismo”, porque constitui uma apropriação indevida de uma condição clínica que afeta as relações com o mundo exterior dos seus filhos. Os seus filhos são pessoas com deficiência e deverão ser respeitados como qualquer outro. Solicitaram, e muito bem, que deixassem de utilizar as palavras autista ou autismo como forma pejorativa. Apoiado. Quanto ao uso de “esquizofrénico”, ou “esquizofrenia”, também deveriam seguir o mesmo curso, deixarem de ser utilizados como armas de arremesso. Deste modo, certas palavras, como palhaço, autismo e esquizofrenia deveriam ser retirados do léxico e do debate político. Há outras, com toda a certeza, que merecem, também, uma apreciação semelhante.
Não é só na política que tem de haver cuidado com o uso de certas palavras, mas também na medicina e no dia-a-dia. Vejamos, um diabético não deverá ser designado como tal, porque é uma forma de categorização ou de diminuição da sua condição e até de discriminação. Então, como devemos chamá-lo? Simplesmente como “pessoa com diabetes”. Este movimento está a dar os primeiros passos e, em breve, teremos de alterar certas designações ou formas de “etiquetar” as pessoas. Um hipertenso passará a ser uma pessoa com hipertensão, um canceroso, alguém que sofre de cancro, um tuberculoso, uma pessoa com tuberculose, um depressivo, uma pessoa que sofre de depressão e, assim, sucessivamente. Veja-se o que aconteceu há alguns anos quando certas crianças eram catalogadas de “mongoloides”, designação considerada como ofensiva. As crianças que sofrem desta doença passaram a ser designadas como portadoras de trissomia 21.
Compreendo esta corrente, e, até, aceito as justificações desde que sejam bem explicadas. Espero que as modificações subsequentes possam constituir uma mais-valia em termos de mudanças de comportamentos e forma de ser dos cidadãos levando-os a ser mais solidários e menos agressivos.
Muitos mais exemplos poderiam ser descritos, o último dos quais, de que tenho conhecimento, tem a ver com a mudança de designação do “estado vegetativo persistente”, situação caracterizada por cérebros gravemente lesionados. Como a designação “vegetativa” é considerada algo pejorativa, foi proposto a sua substituição pela “pacientes vigilantes não responsivos”. Pretende-se, deste modo, retirar ou evitar aspetos negativos e discriminativos associados a algumas palavras ou expressões. Esta ideia não é nova, é velha. Velha? Recordo que alguns colegas meus recusam usar a palavra “velho”, para designar alguém com certa idade, indo ao encontro da sabedoria popular, segundo a qual “velhos são os trapos”. Preferem a palavra idoso. Idoso? Não pode ser, tem que a substituir por “pessoa com alguma idade”.
É muito provável que, em breve, possamos assistir a uma mudança na forma de referenciar os doentes ou deficientes, dando ênfase à pessoa, “pessoa com doença”, “pessoa com deficiência”.
3 comentários:
Análise perfeita, caro Professor Massano Cardoso. O problema de comunicação entre as pessoas, reside muitas vezes na nessecidade que cada um demonstra em ser superior a esse “gajo” e a essa “gaja”. No entanto, uma superioridade dúbia, "marreta" como algumas vezes fica patente.
Espero, que após os discursos de António Barrero e de Cavaco Silva (por ordem cronológica), ontem na Sessão Solene das comemorações do dia 10 de Junho, os políticos Portugueses tenham ganho uma nova consciência da importância para a recuperação de Portugal do bom uso da palavra, da comunicação e do entendimento.
Caro Dr. Massano
O problema é quando a aparência de esquizofrenia invade o espaço público. Não sendo médico, mas tendo um certo sentido para as soft competencies, tão diferentes das hard que qualificam, a minha dúvida fica em saber se o diagnóstico de tal doença não é passível de ser diagnosticado no espaço público? Ah, pudesse eu ser médico não de esqueletos, de dentisteria ou de outros quaisquer tecidos moles, mas do tecido da psique e jogaria quase todos os dias em frente à TV ao jogo da verdade e consequência pelos olhares, trejeitos, espasmos que indiciam (indiciam?) esquizofrenia, bipolaridade, ansiedade, delírio... ou a pior de todas as doenças, a falta de humanidade e de sentido de si e de nós.
Concordo com a sua proposta, caro massano cardoso, se mudarmos ao menos a linguagem pode ser que o resto venha por acréscimo, acentuado que a palavra pessoa deve ser prioritária.
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