Depois do almoço - domingo pré estival a querer apagar as brisas frias dos dias anteriores, e a homenagear o início das festividades populares -, dei um simbólico passeio pelas redondezas da casa de pasto, pomposamente designada de restaurante, onde se dessedentavam e enchiam a mula cidadãos desprovidos de qualquer etiqueta e maneiras, a não ser aquelas que, desde os mais recônditos tempos, foram determinantes para a sobrevivência e evolução da espécie. Um estilo bem primitivo, embora modernizado pelo uso de facas, colheres e garfos, que mais pareciam armas de ataque do que instrumentos de auxílio ao repasto. Ouviam-se perfeitamente alguns arrotos, sons de mós a roerem ossos, a mistura da saliva e do vinho com a chanfana, prolongados aaa a testemunhar a passagem do bolo alimentar pelas goelas, enfim, uma miscelânea de ruídos alimentares, o bater de metais, o tilintar dos vidros, o jorrar do vinho das cântaras para os copos e as naturais conversas e apartes. Não desgosto, confesso. São ótimos locais para recriar a imaginação e dar sentido a alguns problemas e vivências do quotidiano. Cá fora, perto, ao redor da bela capela octogonal, setecentista, destacava-se uma caravana de farturas, uma máquina de algodão doce, música popular ambiente, um jardim mal-amanhado e desprovido dos elementos fundamentais, relva e flores, centrado por um coreto que já viu melhores dias, mas repleto de instrumentos musicais, muitas mesas e cadeiras de plástico vermelhas e brancas, servindo de apoio a dois improvisados restaurantes, onde os membros da filarmónica se entretinham, avidamente, a dar alimento ao corpo, para poderem desgastá-lo durante a tarde. Uma festa pobrezinha, a querer manter viva secular tradição, mas algo triste, porque não se avizinhava grandes ajuntamentos. Os tempos mudam e a vontade de perpetuar certos rituais ameaça entrar em putrefação mesmo em vida.
Entrei na capela, porque hoje estavam expostos mais santos do que é habitual, facto que me foi dado a ver através de uma porta lateral. À esquerda, quatro santos colocados em pequenos andores e uma bandeira anunciavam que iriam ser incorporados numa procissão. À direita, um Cristo de madeira, não muito elaborado, estava igualmente pronto, e presumo que ansioso, para ir apanhar um pouco de ar e de sol, talvez o único dia do ano a que tem direito a este privilégio. Um vigilante, com ar típico de quem vive entre a sacristia e o altar, vigiava, sentado a uma pequena mesa, ornamentada de flores e com uma bela e enorme salva cheia de euros e de cêntimos, os santos. São santos, mas são incapazes de resistirem à cobiça indo com qualquer um que se queira aproveitar dos seus silêncios. O primeiro, grande, era um Santo António com o menino ao colo. Nada de especial. Tosco, muito tosco, e não era por motivos artísticos ou de escola, mas por ter sido mal talhado. Ao seu lado uma Nossa Senhora de Fátima, seguida de uma Santa Teresinha e, a mais pequena de todas as estatuetas, mas, sem dúvida, a mais preciosa e bonita, uma Rainha Santa. Estavam todos enfeitados com flores e ramagens, mas a Rainha Santa sobressaía como uma ninfa a emergir de um belo e frondoso lago de lindas e perfeitas rosas.
Gosto de apreciar estes quadros temporários perdidos no Portugal mais ou menos profundo. Pessoas de alguma idade também estavam a apreciar as figuras. Uma delas, corcunda de uma longa velhice e trabalho duro, e apoiada em duas canadianas, movia-se com extrema dificuldade. Olhava para a Nossa Senhora de Fátima. Foi então que, em voz muito alta, desabafou um pouco agastada: - Tu, afinal não me ligas nada! Eu bem te peço ajuda para as minhas pernas e tu não fazes nada! O vigilante, com o seu ar beato, incomodado com esta observação, ripostou-lhe num tom de superioridade: - O que é preciso é ter fé! O que é preciso é ter fé! A senhora, ao aperceber-se que lhe eram dirigidas as palavras, não esteve com meias medidas e disse-lhe: - Olhe lá, fé tenho eu, ouviu? E muita! Eu tenho muito fé, o que eu não tenho são melhoras! Incomodada, virou-lhe a corcunda e saiu da capela a refilar, “ora vejam lá, a querer-me dizer que é preciso ter fé”! E lá foi, pé ante pé, com muita dificuldade, e algumas dores, para a igreja em frente, quem sabe se na expectativa de encontrar outro santo ou santa da sua devoção que lhe possa aliviar as malditas dores e agilizar as pernas sem ter de ouvir “bocas santas”. O Senhor dos Milagres, que habita naquela bela capela, assistiu à cena, mas anda, pelos vistos, um pouco frouxo e, se não se acautela, qualquer dia ninguém lhe aparece para pedir um milagre nem para comemorar o dia...
E depois? Depois, mais um pequeno grande vazio a somar a tantos outros vazios.
Entrei na capela, porque hoje estavam expostos mais santos do que é habitual, facto que me foi dado a ver através de uma porta lateral. À esquerda, quatro santos colocados em pequenos andores e uma bandeira anunciavam que iriam ser incorporados numa procissão. À direita, um Cristo de madeira, não muito elaborado, estava igualmente pronto, e presumo que ansioso, para ir apanhar um pouco de ar e de sol, talvez o único dia do ano a que tem direito a este privilégio. Um vigilante, com ar típico de quem vive entre a sacristia e o altar, vigiava, sentado a uma pequena mesa, ornamentada de flores e com uma bela e enorme salva cheia de euros e de cêntimos, os santos. São santos, mas são incapazes de resistirem à cobiça indo com qualquer um que se queira aproveitar dos seus silêncios. O primeiro, grande, era um Santo António com o menino ao colo. Nada de especial. Tosco, muito tosco, e não era por motivos artísticos ou de escola, mas por ter sido mal talhado. Ao seu lado uma Nossa Senhora de Fátima, seguida de uma Santa Teresinha e, a mais pequena de todas as estatuetas, mas, sem dúvida, a mais preciosa e bonita, uma Rainha Santa. Estavam todos enfeitados com flores e ramagens, mas a Rainha Santa sobressaía como uma ninfa a emergir de um belo e frondoso lago de lindas e perfeitas rosas.
Gosto de apreciar estes quadros temporários perdidos no Portugal mais ou menos profundo. Pessoas de alguma idade também estavam a apreciar as figuras. Uma delas, corcunda de uma longa velhice e trabalho duro, e apoiada em duas canadianas, movia-se com extrema dificuldade. Olhava para a Nossa Senhora de Fátima. Foi então que, em voz muito alta, desabafou um pouco agastada: - Tu, afinal não me ligas nada! Eu bem te peço ajuda para as minhas pernas e tu não fazes nada! O vigilante, com o seu ar beato, incomodado com esta observação, ripostou-lhe num tom de superioridade: - O que é preciso é ter fé! O que é preciso é ter fé! A senhora, ao aperceber-se que lhe eram dirigidas as palavras, não esteve com meias medidas e disse-lhe: - Olhe lá, fé tenho eu, ouviu? E muita! Eu tenho muito fé, o que eu não tenho são melhoras! Incomodada, virou-lhe a corcunda e saiu da capela a refilar, “ora vejam lá, a querer-me dizer que é preciso ter fé”! E lá foi, pé ante pé, com muita dificuldade, e algumas dores, para a igreja em frente, quem sabe se na expectativa de encontrar outro santo ou santa da sua devoção que lhe possa aliviar as malditas dores e agilizar as pernas sem ter de ouvir “bocas santas”. O Senhor dos Milagres, que habita naquela bela capela, assistiu à cena, mas anda, pelos vistos, um pouco frouxo e, se não se acautela, qualquer dia ninguém lhe aparece para pedir um milagre nem para comemorar o dia...
E depois? Depois, mais um pequeno grande vazio a somar a tantos outros vazios.
7 comentários:
Na verdade, o vigilante não mentiu à senhora das dores. Fé é o remédio para tudo. A questão está em como atingir esse estado miraculoso. Dizem que basta acreditar mas... acreditar como?, acreditar quando? e sobretudo, acreditar em quem?
O nosso critério, obriga-nos a acreditar em algo conhecido, experienciado e provado, ou em alguem que prove possuir qualidades ou que tenha praticado actos que a tornem merecedor dessa cumplicidade. Sim, porque acreditar, é também, estabelecer uma relação de cumplicidade, uma relação de entrega incondicional, uma relação de abandono, de esvaziamento a favor do outro.
Então, de que maneira será possível estabelecer uma relação de fé, com alguém que se julga ter existido, que se julga ter praticado determinados actos e com quem não sabemos mínimamente se estará disposto a estabelecer o mesmo género de relação conosco, mesmo que em espírito?
Mas sim, mantenho a convicção de que a fé, é o remédio para tudo. Falta-nos saber encontrar a forma correcta e de a direccionar, objectivamente, falta-nos descobrir a forma de estabelecer firmemente essa relação de intimidade e de cumplicidade.
À dias, discutia com um amigo a possibilidade de viver, sem a necessidade de ingerir alimentos.
Ele achou que eu estava parvo.
Expliquei-lhe o meu ponto de vista da seguinte forma; normalmente ingerimos vegetais, animais e minerais, para repor as nossas energias. Foi assim que aprendemos a fazer desde que nascemos. Porém, sabemos que tanto os vegetais, como os animais e ainda os minerais, libertam naturalmente energia, da mesma forma que o sol, a terra, o mar, o ar. Aquilo que ainda não aprendemos, foi a forma de captar essas energias, sem que seja necessário ingeri-las, da mesma forma que, quando passeamos num pinhal, ou à beira mar, sentimos que a tensão desaparece, os músculos relaxam, a mente aclara, a boa disposição é retomada e no fim, referimos que recarregámos as baterias.
Bartolomeu
Tudo bem. Não tenho nada contra os que têm fé, mas não abuse, porque não me apetece deixar de comer uma boa chanfana e beber um bom tinto! Por alguma razão temos um estômago, e não só! Imagine se os seus princípios se estendessem a outros órgãos... Uma chatice dos diabos!
Um raspanete à santa não é falta de fé, é só um sinal de impaciência, se ela não achasse que a Santa podia ajudá-la não ia lá ralhar-lhe.Um quadro realista, pintado com todos os detalhes, desde o corpo, seus apetites e mazelas, até à alma, a pedir impossíveis. Um observador sente-se sempre um pouco vazio depois de deixar os seus pontos de observação, mas vazio depois da chanfana que aqui descreveu? se foi a que provei uma vez aí em Santa Comba deve ter sido um belo almoço :)
Suzana
Vazio de emoções, não no presente, mas num eventual futuro, "vazio" das nossas tradições e realidades, porque o estômago, no momento, ficou bem compostinho, graças a Deus! Por acaso não foi em Santa Comba, onde se come bem, e eu que o diga, foi na vizinha Tábua, que, também, não deixa crédito em maus alheias...
Fico muito satisfeito por ter essa recordação gastronómica da minha terra... É preciso reaviva-la de vez em quando.
E eu que o diga, caro Professor, que à fé de quem sou, aqui me declaro um bom "gourmand". Só por isso ainda não me decidi a colocar em prática, a "técnica" que descrevi... um dia, talvez.
;)
Drª. Suzana lembrou-me a estória do fulano que ía todas as semanas a uma igreja, pedir à santa da sua devoção para que lhe saísse o euromilhões. E no final de cada prece, lamentava-se de andar ha tanto tempo a pedir e a santa não se ter ainda dignado ajuda-lo e deferir-lhe a petição.
Um belo dia, enquanto rogava, ajoelhado em frente ao altar da santa, esta moveu-se e falou-lhe, disse-lhe; olha lá meu palerma, se queres que te ajude, também tens de me ajudar, no mínimo vê se registas uma aposta!
;)
Lá irei, caro amigo, lá irei, trouxe essa recordação mas também outras inestimáveis, a simpatia das pessoas, a beleza da paisagem, tudo convida a voltar a essas paregens e se encontrar os meus amigos então é ouro sobre azul :)
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