Como a assembleia acabou mais cedo do que o previsto, senti, com certa satisfação, que iria gozar um agradável fim de tarde. Descansar e ler um pouco na minha esplanada favorita. Dei um salto a casa e rapei do “Luar de Mulher” de Romani Gary. Quando me instalei, junto da ribeira, fui invadido por uma sensação triste, a tarde, subitamente, vestiu-se de cinzento e começou a açoitar-me com uma brisa muito fria. Sozinho. É triste estar sozinho numa esplanada e ainda mais quando o largo que faz parte da minha existência, ou antes da minha essência, se encontra esvaziado de pessoas, de crianças e, até, de animais; ainda aparecem alguns gatos, mas para mim não contam, nunca contaram, ainda não fazem parte do meu conceito de humanidade. Não é justo que um junho amadurecido me trate desta maneira, depois de uma semana de intenso trabalho e dedicação. Não é justo. Vesti um agasalho, resisti à tentação em refugiar-me no interior do café, pedi uma bebida gelada e recomecei a ler, na expectativa de o terminar. Gosto de livros que me obrigam a ler em duas patadas. Este é um deles. Depois de o devorar até à última palavra, o cinzento estava mais cinzento, a brisa fria muito mais fria, e a humidade da ribeira molhava-me a alma, apagando as emoções despertadas pela leitura. Olho em redor e não vi pessoas. Levantei-me e fui para casa. Não me cruzei com ninguém. Cheguei ao largo e era só silêncio. Olho para as casas em redor e não descortino vozes, algazarras, gritos, insultos, discussões, que eram tão frequentes e muito diversificadas, dando vida e agitação aquele belo espaço. Algumas das altercações alimentavam-se, cronicamente, de vinho, que, ao fim da tarde e início da noite, sabia como jorrar os primeiros sinais dos seus efeitos, enriquecendo as noites quentes. Agora, nada. Um vazio. A morte levou-os, um atrás de outro, traiçoeiramente, seduzindo os que ainda andam por estas bandas, ou os que pretendem, episodicamente, refugiar-se aqui, a passear pelas suas margens, na esperança de os devorar ao mínimo desequilíbrio ou distração. Lembrei-me de smrt, palavra sérvia que aprendi no dia anterior, quando iniciei a leitura do romance de Romain Gary. Uma das personagens, o senhor Galba, amestrador, bêbado, colecionador de enfartes, e em contínua preocupação recíproca com o seu cão, aponta para o coração proferindo smrt. Explicou em seguida que significava morte em sérvio. “Os eslavos souberam encontrar o som mais autêntico para a coisa... Viperino, reptílico... Enquanto no ocidente, as sonoridades são bastante nobres: la muerte, a morte, la mort, todt...” O autor repetiu-a várias vezes ao longo do texto, e com inteira razão, a dor, o incómodo, a separação e a humilhação subjacentes estão mais de acordo com a sonoridade reptiliana da palavra em sérvio do que com o cantar ocidental, tão bem patenteado na expressão fidelina “revolucion o muerte”.
Às tantas prestamos demasiadas homenagens à morte.
Smrt!
Às tantas prestamos demasiadas homenagens à morte.
Smrt!
4 comentários:
A morte é o acto mais nobre, coerente e honroso que ao homem pode ser oferecido.
A morte, culmina no compto de uma vida. Talvez por isso, no momento de morrer, todos veem a vida passar-lhes em frente, como se de um filme se tratasse.
Não acho nada que a morte seja traiçoeira, sub-reptícia, parece-me até justíssima, apesar de indesejada, incompreendida, sempre.
A morte, é tão velha como a vida, tem sido sua companheira inseparável desde que nasceu. Serão gémeas? Talvez... se não forem, ao menos, completam-se, regulam-se.
Talvez a vida e a morte, sejam duas crianças traquinas que brincam ao jogo da Glória... ou do Monopólio, utilizando os seres como peças desse jogo, cuja finalidade é manter o equilíbrio... não culminando com a vitória ou a derrota de um dos jogadores.
A palavra vida suscita excitação, movimento, empolgamento, acção. A palavra morte suscita paz, adormecimento, sentimento de tarefa cumprida.
Bartolomeu
Smrt. Parafraseando o protagonista de Romain Gary...
Quer para vida, como para morte, não existem eufemismos... ou seja, uma, é eufemismo da outra na medida em que se substituem e tendem, cada uma ao seu jeito, justificar-se, substituir-se mutuamente...
Existe "compaixão" no sentido que o idiota do Kundera lhe dá. Mas pelos vistos as pessoas não entendem o conceito...
Está descrito numa versão qualquer da "Insustentável leveza do Ser".
Mas o livro é demasiado papular para que se leve a sério...
Sim, não existe o conceito...
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