Amo-te Lisboa. Confesso que estou apaixonado por ti, sempre estive e estarei, é difícil explicar porquê. Há muito que não repouso no teu seio. Vou e regresso num ápice e não consigo desfrutar um encontro amoroso. Amo-te Lisboa. És a mais bela cidade do universo. Não sei como consegues encantar-me desta maneira. Deves ser a única sereia a quem Ulisses não se importa de se deixar enganar. Eu também não. Sabe-me bem. Obrigaste-me, mais uma vez, a vir ter contigo. És obsessiva, dominadora, castigadora, castradora, e eu tenho de obedecer aos teus caprichos centralizadores. Levantei-me de véspera e fui ter contigo. Trabalhei horas seguidas e consegui aquilo que nunca fiz a nenhum automóvel, por o miserável cérebro a aquecer como se fosse um velho motor. Ia gripando e antes que acontecesse fui refrigerá-lo nas tuas ruas e vielas. Amo-te Lisboa. És única. Mas reparo que sofres. Apagastes velhas livrarias que tanto admirava, transformastes vigaristas de antiguidades em humildes pedintes, não ligue aos preços, a crise está a matar-nos, interessa-lhe esse contador, não sei qual o preço, talvez três mil euros, mas com mil e duzentos pode levá-lo. E levava-o com muito gosto, porque nunca vi nada semelhante. Para por em que sítio? Sei lá, mas com arte e imaginação sempre se consegue uma solução, e sei, também, quem ficaria satisfeita. Mas como levá-lo? Toca o telefone. Interrompo as minhas lucubrações. Indicativo de Lisboa? Já o cheiro à distância. Hum, do banco? Querem ver que é por causa do seguro do carro. Era mesmo. Uma voz feminina, doce, a imitar os sons de Lisboa, queria saber a razão do cancelamento. A chamada vai ser gravada, importa-se, não. Ri-me com este pormenor. Expliquei-lhe, educadamente, que a razão tinha a ver com o facto de outra companhia ter feito um preço mais baixo. Mas por que razão não falou antes connosco? Porque não me apetece regatear. Já fiz uma vez convosco e, nos anos seguintes, voltou tudo à mesma ou ainda pior. A senhora tem de compreender que o mundo está a mudar. Como estava em Lisboa e amo esta cidade fui muito cortês. Lisboa merece, o indicativo era de Lisboa.
Fui a um dos alfarrabistas conhecidos e adquiri duas obras, baratas, não trouxe outras duas porque eram muito dispendiosas. Em Lisboa é comum pedir este e o outro mundo por coisas meio mixuruca. Desta feita declinei a oferta, porque tinha a certeza de ler Cosme o Manhoso por tuta e meia, poupando oitenta euros por meia dúzia de páginas mesmo que fossem do fim do século XVIII. Muito obrigado, levo estas duas pequenas brochuras por cinco euros, sempre era mais em conta. Deambulei e paguei joaninamente uma imperial muito fresca servida por um resquício brasileiro que um dos joões se lembrou de importar. Nada que me impeça de amar a baixa pombalina. Tinha fome, da real, e fui à cata de qualquer coisa para comer. Eram horas, as pernas tremelicavam. Assediado até dizer basta, entrei numa casa de pasto transformada em restaurante parisiense. São cada vez mais as putas gastronómicas a oferecerem os seus serviços. Entrei numa e pedi algo adaptado às condições ambientais, não fosse o diabo tecê-las. Vantagem de ser, também, uma "puta" velha. Para beber? Vinho da casa. Só jarra de meio litro. Meio litro? É muito. Arranje uma garrafa pequena. Vinho alentejano? Pode ser. Não lhe perguntei o preço. Nem ele disse. Já sabia que ia ser levado. E fui. A garrafa foi mais cara que o prato. Sorri. Lisboa é mesmo assim, se puder engana-nos com o maior descaramento, mas não importa, ela merece. Não há cidade mais bela. Não bebi a meia garrafa toda, o fígado não merece ser castigado dessa forma. Pensei, o melhor é andar. Tracei o azimute para o Terreiro do Paço, assim sempre podia "desmoer" o alentejano. Ao aproximar-me, o cheiro inconfundível do mijo lisboeta e da maresia do Tejo deram-me as boas vindas. Um dos mais característicos cheiros de Lisboa que nenhum postal ilustrado consegue reproduzir. Passei pelo D. José. Olhei-o e disse-lhe, boa tarde. Ele, moita carrasco, típico dos gajos que se julgam importantes ou, então, continua a passar as tardes a beber jarras de tinto, como é seu costume. Sentei-me junto ao cais da colunas e fiquei até este momento a escrevinhar, deixando que a Lua em crescendo me saudasse, ouvindo as águas do Tejo e saboreando a mais saborosa das brisas. O vento fala, eu termino, sei o que ele diz. Eu também te amo Lisboa.
4 comentários:
Uma bela declaração de amor, sem dúvida, Lisboa deve ficar toda vaidosa :)
Um amor assim, certamente que é correspondido aqui.
Lisboa é realmente tudo isso que o caro Professor descreve, uma cidade com uma luz especial, porque os dois arquitectos do Marquês-Maçon, souberam aproveitar bem a geometria, a matemática, a alvura da pedra e casa-los na prefeição com a exposição solar daquele vale entre a colina do Castelo e a do Carmo.
Mas Lisboa é muito mais, se nos embrenharmos pelas vielas dos bairros antigos. É nessas veias que corre o resto do genuíno sangue da cidade. O sangue que a manteve activa e próspera durante séculos, porque aí residiram os artífices dos vários ofícios.
Quanto às putas... nada de estranhar, pois já no tempo em que Afonso Henriques a sitiou, o Bairro Alto era o local onde os marinheiros que chegavam de longe, íam beber, jogar e matar as saudades de um corpo de mulher.
No melhor filme de Roman Polanski - Chinatown - Noah Cross tem a seguinte fala: “os políticos, os prédios feios e as putas tornam-se sempre respeitáveis se durarem muito tempo”.
Lisboa tem muito de cada um destes ingredientes, falta-lhe tornar-se respeitável. Ou melhor... falta-lhe que os responsáveis pela sua administração, a respeitem e lhe restituam o seu genuíno estatuto de capital histórica e com imensa História.
;)
Lisboa das sete colinas,
é uma cidade de encantos,
é uma cidade com Santos,
e com pobres p'las esquinas.
Tem S. Vicente e Santa Luzia,
tem S.Paulo e S.Sebastião,
tem S.Pedro e Sant'Antão,
e tem s.José e Santa Maria.
Tem o castelo da mourama,
tem o Aljube de má memória,
tem o Elevador da Glória
e tem Mouraria e Alfama.
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