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terça-feira, 27 de agosto de 2013

"Falam pouco, mas sabem sorrir"...






Acabámos de almoçar. - Vamos dar uma volta? - Para onde? - Sei lá, por aí acima, para o norte do distrito, para as terras do demo, por exemplo. - Credo, abrenúncio, fora-cão. Terras do Demónio? Ri-me, estava à espera de uma expressão tão regional como esta. - Sim, são belas terras, onde, segundo Aquilino, "Cristo nunca por lá passou, nem El-Rei". - Vamos!
Passei por Vila de Paiva, onde nem cheguei a parar, apesar de ter vasculhado as suas ruelas. - Só pedra. É tudo feito com pedra. Podem cair os telhados, mas as paredes não.
Cheguei a Moimenta da Beira, enquadrada naquelas terras bravas em que o granito é rei e senhor. Belas praças, monumentos e casario brasonado rico em rendas de pedra. Pena os atentados ao bom gosto dos nossos antepassados, uma dor de alma. Nada a fazer, parece que se perdeu grande parte do sentido estético das populações, mas ao menos a gente é simpática e atenciosa. São de poucas falas, mas sabem sorrir. Sentámo-nos na esplanada e vasculhei o convento em frente. Fechado, como seria de esperar, impediu-me de ver as suas belezas. Tive que me contentar com o exterior, mas para mim é pouco, muito pouco, porque gosto de ver o interior das almas. Fui ler o que diziam as placas de mármore branco espetadas nas paredes do escuro granito do Convento de Nossa Senhora da Purificação. Fiquei a saber que um tal Manuel Pires, em maio de 1845, fez ali penitência antes de ser enforcado numa localidade vizinha. É considerado como um dos últimos homens a ser executado em nome da Lei. A placa de mármore, uma intrusão ao granito da região, faz parte da comemoração do primeiro centenário da abolição da pena de morte em Portugal, "Ama o teu próximo, não matarás". Portugal foi pioneiro a nível mundial, constituindo um exemplo glorioso para o mundo de então, provando que um pequeno povo consegue ter um grande coração. Fiquei sentado a pensar na agonia do condenado. Ali, à minha frente, naquela igreja, a ignomínia humana escondeu-se sob a cruz, por imposição da Lei dos homens, enquanto as suas enegrecidas paredes exteriores exultam de branco a alegria e o orgulho de um ato próprio de Cristo. Estranho mundo. 
Levantei-me e fui ao local onde nasceu Aquilino Ribeiro. Entrei em Carregal. Não deve estar muito diferente do seu tempo. O silêncio, a luz, a cor e as velhas pedras saudaram-me em uníssono. Terra simples e gente simples. Olhei para a velha igreja sedutora. Entrei no adro e vi contorcidas árvores, centenárias, coevas do escritor. Deve ter olhado e encostado aos seus troncos. Fiz o mesmo. À esquerda, sentada no banco de pedra que corria o muro, deparei-me com uma mulher de idade, vestida de negro. Aproximei-me com cuidado. Pensei se não seria uma figura retirada de alguma obra sua. Parecia uma vigilante. - Quer ver a igreja? Disse-me a sorrir. Este pessoal fala pouco, mas sabe sorrir. - Queria! - Então, entre por  aquela porta, só está encostada. - A senhora é a vigilante? Perguntei-lhe. - Não! Disse sempre a sorrir. - Estou a apenas a fazer horas para o terço. - Entre bom senhor, entre, esteja à vontade, a casa é sua. - Obrigado. Entrei e desfrutei a beleza ímpar de arte que nunca pensei encontrar num local como aquele. Vi e senti o que Aquilino, um dos meus autores favoritos, que me ensinou a perscrutar as almas, as gentes e a minha língua, deverá ter sentido. Ninguém pode ser insensível a tanta beleza, silenciosa e suave que corre nas veias daquelas pessoas e nas paredes dos espaços que visitei. Ao sair, o mulherio, já de certa idade, sentadas ou ajoelhadas, olhavam-nos como se fizéssemos parte da sua comunidade. Interromperam as suas orações e cumprimentaram-nos com gentileza comovente, como se fizéssemos parte das contas dos seus rosários. Não falam muito, falam mais com os olhos e sorriem. 
Em Sernancelhe deixei-me embalar pelo calor que emanava das suas pedras silenciosas, um calor que me convidou à solidão. Eu adoro a solidão. Uma agradável sensação invadiu-me, lentamente, eu sei quando as pedras querem falar. Foi então que compreendi que o granito cinzela as almas dos homens e o cinzel do homem esculpe o granito. Esculpem-se um ao outro, a pedra o homem, e o homem a pedra. Falam pouco, mas sabem sorrir, são como as pedras, também falam pouco, mas sabem sorrir. Foi pena que Cristo não tenha passado por aquelas bandas. Nem sabe o que perdeu... 

2 comentários:

Anónimo disse...

Excelente retrato dessas terras em que a cada passo podemos admirar um monumento granítico esculpido pela natureza.
Fez-me recordar bons momentos de passeio pelas Terras do Demo, ali, paredes meias com a minha natal.

Suzana Toscano disse...

Também já passeei com muito gosto e interesse por essas paragens mas depois deste texto até sinto que não vi nada! Belíssima descrição.