Ler a "Trindade Artística", um dos capítulos da obra "Beira Alta, Terra e Gente", de Alexandre Lucena e Vale, obrigou-me a penitenciar-me. O autor descreve uma bela viagem em fins de maio, durante a qual visitou e se embeveceu com três obras-primas da Beira. Das três, só visitei, até hoje, uma, a Igreja de São Pedro de Lourosa, a mais antiga do país, senão da península, cujos 1101 anos são prova disso. Quanto às outras duas nunca as consegui desfrutar. Sempre que me desloco às localidades onde se encontram esbarro com o nariz na porta. As nossas igrejas, sobretudo as da zona Centro, estão quase sempre fechadas, abrindo apenas à hora do culto. Perdi o conto às vezes que fui a Oliveira do Conde para ver o túmulo gótico de Fernão Gomes de Góis feito cavaleiro no dia da conquista de Ceuta por el-rei D. João I. Ontem, lembrei-me, e se fosse num domingo de manhã quando há missa. Pus-me a caminho. A porta lateral aberta permitiu-me ver um templo muito interessante. Alguns fiéis, que estavam à espera da celebração, olharam-me, e, vendo a minha surpresa, sorriram, apontando gentilmente os seus dedos, como se tivessem ensaiado o gesto, para o lado esquerdo do altar. Até que enfim, pensei. Tudo o que já li a propósito do túmulo, da simbologia e dos dizeres é manifestamente pouco para a beleza daquela obra de arte. Senti um alívio e, ao mesmo tempo, esculpi na minha pedra da memória os sentimentos despertados pela delicadeza do monumento. É difícil exteriorizar o manancial de recordações de outrem, e de outras épocas e eras, como se as tivesse igualmente vividas. Voltarei àquele local, pelo menos no dia 21 de agosto de 2015, dia da tomada de Ceuta, dia da sua investidura como cavaleiro, quando se comemorar o sexto centenário.
Depois, fiz o habitual de domingo. Almocei no meu recanto perdido. Não liguei muito às notas inspiradoras, que poderiam ajudar a tecer alguma história. O cavaleiro e o seu túmulo acariciavam e tranquilizavam o meu espírito.
Em seguida, o céu negro de fumo, de um incêndio não muito longe, levou-me a que vogasse para terras mais seguras, mas esbarrei com Lourosa onde decorria uma feira moçárabe. Não estava muita gente, o povoado não é grande. As barracas e sobretudo as pessoas vestidas à época davam um colorido fabuloso ao espaço envolvente da outra preciosidade artística. Árabes, judeus, cristãos, e até ateus, porque não, vestidos à maneira, abrilhantavam o espaço, ouvindo música da época e até presenciar a representação de um casamento judeu. Uma representação que merece ser enaltecida, com festa e danças no final, algo de belo, algo perdido nas entranhas profundas da Beira Alta. Talvez o que me fez emocionar naquele espaço foi a lembrança de uma espécie de tolerância entre culturas e religiões diferentes, em que a alegria e a sensação de irmandade deveriam existir entre os membros do povo. A igreja, desta vez, estava aberta, pelo que não tive necessidade de ir à torre tocar o sino para chamar a simpática "zeladora" do templo. Basta dar três toques no sino e ela aparece logo. Revisitei-a com muito prazer. Confesso que não me importaria de sentar tardes inteiras no seu interior para respirar o ar e ouvir as almas a contarem as suas histórias. Sim, sente-se perfeitamente que estão "mortinhas" para contá-las. No silêncio, na penumbra, debaixo daqueles arcos e tocando as suas pedras ouvem-se com estranha facilidade coisas esquecidas ao longo de mais de mil anos. Fui até Oliveira do Hospital, queria, desta feita, visitar a Capela dos Ferreiros para apreciar o último componente da "Trindade Artística". Domingo à tarde. O templo estava fechado, como seria de esperar. Mas mesmo assim fui. Pelo menos calcorreei os mesmos lugares que Lucena e Vale visitou há muitos anos. Só me falta ver as duas estátuas jacentes, a de Domingos Joanes e a da sua mulher Domingas Sabachais. Não vou desistir, ou não fosse um genuíno beirão.
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