Este mundo é muito confuso e por mais que uma pessoa viva acaba sempre por se surpreender quando menos espera. No fundo não deixa de ser um encanto e uma recompensa, já que não há nada mais aborrido do que a rotina sem sentido e sem fim. Não significa esta afirmação que as tais surpresas enchem as medidas, não, muitas vezes obrigam-me apenas a refletir e a tentar compreender um pouco mais a natureza humana. Não sei se consigo, às tantas não, mas não ponho de lado que o defeito possa ser meu. Sou um produto enviesado de uma vida complexa, que deixa muito a desejar em termos de compreensão e finalidade. Não faz mal, compenso com uma espécie de faz-de-conta que um dia deixará de existir. Uma certeza louca, tranquilizadora por uma parte e angustiante por outra. O melhor é adiar tais pensamentos.
A senhora não era muito bonita, chamava a atenção por apresentar uma certa frescura que a leitura rápida do processo confirmou, embora já denunciasse uma leve tentativa de amarfanhamento da pele. Impressão minha, com toda a certeza. Vestida de negro, não por uma questão de ideologia radical - não tinha esse aspeto -, mas talvez para esconder áreas rechonchudas, cheias, um pouco avantajadas, mas que mesmo assim não constituía uma aberração estética. Cheinha! Sim, o melhor termo é mesmo este, "cheinha". Os dentes estavam atravessados pelos simpáticos e inestéticos "arames" destinados a corrigir as "deficiências" da natureza. Examinei-a, e ao pedir para abrir a boca a senhora não conseguiu, não por causa dos "arames" mas devido a dois elásticos que, dos dois lados, ligavam as armações.
- Pode abrir a boca, se faz favor.
- Não posso, para isso tenho de tirar os elásticos. - Mostrou-mos. Até fiquei com vontade de os utilizar para prender uns documentos que tinha à minha frente.
- Deixe lá minha senhora, não se incomode, não vale a pena. - Ainda pensei que poderia ser capaz de os utilizar com se fosse uma fisga. O exame continuou e as perguntas também.
- Então o que é que vai fazer no seu novo trabalho?
- Ah! Sou psicóloga.
- Sim senhora. Uma atividade interessante e muito útil. - O exame ia sendo feito de acordo com as regras. Ao realizar a otoscopia verifiquei que a orelha estava cheia de pequeninos adesivos, quadradinhos que escondiam pequenas saliências. Fiquei surpreendido e até pensei que seriam piercings. Mas piercings cobertos por adesivos?! Olhei para o outro pavilhão e vi que não tinha nada.
- Minha senhora, desculpe, mas pode-me dizer o que é que se passa com a sua orelha? - Olhou-me com um sorriso enfeitado com arames e elásticos e respondeu-me:
- Acupuntura, senhor doutor.
- Acupuntura?!- Será que tem lá agulhas? Toquei mas não me apercebi. Eram "coisas" duras e lisas.
- Sim, ando a fazer acupuntura para perder cinco quilos?
- Como?!
- A senhora doutora que me anda a fazer acupuntura colocou sementes nos "pontos" da orelha para perder peso.
- Sementes?!
- Sim, sementes.
- E que tipo de sementes?
- Não sei.
- Isto é para perder peso?
- Sim, quero perder cinco kg.
- Hum, muito bem. Presumo que também faz dieta.
- Sim, faço.
- Come muitos vegetais, não é verdade?
- Bom, claro.
- Pois! - Mas que coisa tão estranha, uma psicóloga, com formação superior, e logo de uma área em que a investigação marca uma posição de relevo, andar a fazer coisas destas, ia-me levando a fazer alguns comentários. Travei, pus apenas um ligeiro sorriso irónico, que não sei se a senhora percebeu ou não, e disse-lhe:
- O melhor é ter cuidado com as suas sementes, não vá aparecer por aí uma horta no seu ouvido. Nunca se sabe, não é verdade? Pronto, terminou o seu exame. Pode ir e tratar da sua horta auricular. - E foi. Fiquei na dúvida se percebeu o meu alcance. Parece-me que não, o que para uma psicóloga não abona muito...
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