Ontem fui a uma loja onde sou cliente há muitos anos e a dona da loja, que estava ao telefone, não desligou logo, como é habitual e fez-me sinal para esperar um pouco. Não pude evitar ouvir a conversa:
_ Venha, venha cá num saltinho, conversamos um bocadinho, vai ver que se anima…Traga as fotografias de que me falou para eu ver como ia bonita…
Mais um pouco e desligou.
- Coitada, disse-me ela, é minha cliente há mais de dez anos, morreu-lhe o marido de repente, está muito deprimida, mete-se em casa, os filhos já cá passaram a pedir-me para lhe dar algum ânimo.
Pouco depois entra outra senhora, muito apressada, vinha só agradecer-lhe o miminho da surpresa no dia de anos, nem ela sabia como lhe tinha feito bem aquele lanchinho improvisado na loja, uma vela em cima de um bolo pequeno, os parabéns, a ideia, enfim, foi a ideia que a emocionou.
Brinquei com a função de psicóloga que ela tinha desenvolvido na sua pequena loja de bairro, a vender roupas, e na amizade que ia tecendo com as clientes ao longo dos anos, numa relação pessoal que lhe exigia, a ela, que estivesse sempre disponível, atenta, sempre a receber com um sorriso quem lhe entra pela porta. E ela disse-me que às vezes é cansativo, as pessoas entram e ficam ali só para conversar, entram outras pessoas e elas esperam, sobretudo muitas que tiveram uma vida profissional e agora estão reformadas, gostam de ir ali ver as novas colecções, ou os restos, mas procuram sobretudo um momento de convívio cuja falta tanto sentem.
Depois fui a uma farmácia e demorei imenso porque à minha frente estava um senhor velhote a baralhar os remédios todos. O farmacêutico, dobrado sobre o balcão, explicava-lhe tudo uma e outra vez, com paciência de santo, viu as análises, ralhou com o desleixo de já ter passado tanto tempo, ai senhor António, então o senhor não controla isso? E a tensão, tome cuidado com o sal, veja lá se se alimenta como deve ser!
- Coitado – disse-me depois, à laia de desculpa pelo tempo de espera – morreu-lhe a mulher, vive sozinho, é raro o dia em que não passa por aqui para lhe orientar os remédios, ela é que sabia isso tudo e ele não atina, não estava habituado…
No talho, o Senhor Luís perguntou-me pelas minhas filhas, ah, ainda estão para fora?, felizmente o meu rapaz já está aqui a ajudar-me, a ver se encarreira, aqui também faz falta gente nova, ó João, anda cá, esta senhora já te conhece de pequeno…
O comércio de bairro, as lojas que resistem aos recibos verdes que não criam raízes nem cativam clientes, são um mundo em vias de extinção mas com eles desaparece muito mais do que a animação das ruas ou o pequeno negócio. É toda uma rede de sociabilidade, de calor humano e de tradição que se perde, substituída pelas mercadorias a granel nas hiperlojas impessoais onde os empregados olham com mal disfarçada impaciência a multidão monótona que desfila perante os seus olhos.
_ Venha, venha cá num saltinho, conversamos um bocadinho, vai ver que se anima…Traga as fotografias de que me falou para eu ver como ia bonita…
Mais um pouco e desligou.
- Coitada, disse-me ela, é minha cliente há mais de dez anos, morreu-lhe o marido de repente, está muito deprimida, mete-se em casa, os filhos já cá passaram a pedir-me para lhe dar algum ânimo.
Pouco depois entra outra senhora, muito apressada, vinha só agradecer-lhe o miminho da surpresa no dia de anos, nem ela sabia como lhe tinha feito bem aquele lanchinho improvisado na loja, uma vela em cima de um bolo pequeno, os parabéns, a ideia, enfim, foi a ideia que a emocionou.
Brinquei com a função de psicóloga que ela tinha desenvolvido na sua pequena loja de bairro, a vender roupas, e na amizade que ia tecendo com as clientes ao longo dos anos, numa relação pessoal que lhe exigia, a ela, que estivesse sempre disponível, atenta, sempre a receber com um sorriso quem lhe entra pela porta. E ela disse-me que às vezes é cansativo, as pessoas entram e ficam ali só para conversar, entram outras pessoas e elas esperam, sobretudo muitas que tiveram uma vida profissional e agora estão reformadas, gostam de ir ali ver as novas colecções, ou os restos, mas procuram sobretudo um momento de convívio cuja falta tanto sentem.
Depois fui a uma farmácia e demorei imenso porque à minha frente estava um senhor velhote a baralhar os remédios todos. O farmacêutico, dobrado sobre o balcão, explicava-lhe tudo uma e outra vez, com paciência de santo, viu as análises, ralhou com o desleixo de já ter passado tanto tempo, ai senhor António, então o senhor não controla isso? E a tensão, tome cuidado com o sal, veja lá se se alimenta como deve ser!
- Coitado – disse-me depois, à laia de desculpa pelo tempo de espera – morreu-lhe a mulher, vive sozinho, é raro o dia em que não passa por aqui para lhe orientar os remédios, ela é que sabia isso tudo e ele não atina, não estava habituado…
No talho, o Senhor Luís perguntou-me pelas minhas filhas, ah, ainda estão para fora?, felizmente o meu rapaz já está aqui a ajudar-me, a ver se encarreira, aqui também faz falta gente nova, ó João, anda cá, esta senhora já te conhece de pequeno…
O comércio de bairro, as lojas que resistem aos recibos verdes que não criam raízes nem cativam clientes, são um mundo em vias de extinção mas com eles desaparece muito mais do que a animação das ruas ou o pequeno negócio. É toda uma rede de sociabilidade, de calor humano e de tradição que se perde, substituída pelas mercadorias a granel nas hiperlojas impessoais onde os empregados olham com mal disfarçada impaciência a multidão monótona que desfila perante os seus olhos.
11 comentários:
Não é só o comércio de proximidade que está a desaparecer! É também o comércio tradicional.
Os centros das cidades estão cada vez mais desertos.O comércio faz-se hoje nos centros comerciais e nas grandes superfícies. Os seus preços, alguns, são mais baratos e estão colocados nas zonas periféricas para onde as populações são cada vez mais atiradas.
O frenesim da vida actual deixa pouco tempo para ir às compras.O poder de compra diminuiu. Vai-se à baixa, em Lisboa,em Coimbra e no Porto e o que vemos? Bancos, bancos, companhias de seguros e uma ou outra loja que consegue subsistir à custa das baixas rendas que pagam!
Causas? Além das constações que se podem fazer é preciso perscurtar as razões desta tristeza: a estúpida Lei do arrendamento urbano. A promulgada na última legislatura e as que foram geradas nos governos anteriores. O arrendamento foi anatemizado, para dar lugar à compra de casa própria, o que originou as cidades dormitórios.
Sempre vivi em casas arrendadas e só depois de velho comprei casa. Trabalhei em várias localidades do País. Como poderia eu comprar casa? Tanto poderia estar em Vale de Cambra,como em Castelo Branco, Santarém, Vieira do Minho, Faro ou Beja! Cada vez mais a ideia de que o emprego é para toda a vida acabou, de todo. Um casal ou pessoa solteira compra casa, a crédito, está bem de ver. Quer ficar ali para a eternidade, Em vez da casa seguir o empreg, é a casa que tenta segurar o emprego. Ora isto está errado. A mobilidade do posto de trabalho não se coaduna com esta ideia de que a casa é para toda a vida. E, dizem, é preferível pagar as prestações da casa própria do que pagar a renda ao senhorio! Com isto,inviabiliza-se a mobilidade mas não se incentivam as políticas de arrendamento. Eis uma boas razões para explicar a desertificação do coração das cidades.
Reabilitação urbana? Como? Com as SRUS(deveras inconstitucionais, a meu ver e no de muio boa gente), nada se conseguiu a não ser uma vioalção séria do direito de propriedade, dando lugar a exporiações abusivas em proveito de novos "patos bravos" que se aproveitam ds circunstâmcias para fazer negócios imobiliários altamente rendosos.
No que tocam aos arrendamentos comerciais e para serviços,a situação ainda é mais chocante. É recorrente encontrar, na baixa das cidades, rendas de miséria em escritórios de advogados e consultórios médicos que constituem um lobie poderoso na esfera do poder.
Quem está interssado em acabar com isto?
Quem, por este meio,impede a livre concorrência? A que título o senhorio deve ser o garante da previdência social dos inquilinos?
As suas crónicas que procuro não perder, cara Suzana, têm, muitas delas, o condão de me fazerem recordar situações que eu próprio vivenciei. Ao ler a que hoje publicou, que tem a ver com a proximidade entre clientes e donos ou empregados de pequenos comércios e onde ainda se sente a humanização que noutros ambientes fugiu há muito, fez-me viajar a alguns anos atrás. A um tempo onde nas agências bancárias de província se assistia ao vaivém de pessoas que iam lá diariamente só para saber o saldo das suas contas. Hábitos de avarento? Nada disso, o dinheiro que tinham na véspera e no dias anteriores provavelmente não tinha tido qualquer alteração. O saber o saldo era apenas o pretexto para contactar os empregados e estar ali um bocado à conversa, nada mais.
E é curioso que muitas dessas pessoas não sabiam por vezes o nome do Banco mas sabiam que tinham o seu dinheiro no lugar onde o “senhor Joaquim” trabalhava. O Banco tinha apenas o nome dos empregados que os atendiam e que tanta disponibilidade mostravam para os tratar pelo nome, para lhes perguntar pelos filhos e saber se tudo estava bem com eles.
Enfim, havia, nesse tempo, outro tipo de objectivos.
Caro demascarenhas, esse é sem dúvida um excelente exemplo, porque os bancos, sobretudo o funcionário que atendia,eram uma espécie de conselheiros pessoais, sabiam a vida toda de cada um, presumia-se o sigilo mas também uma orientação isenta e preocupada com o interesse do cliente. Hoje,e já várias vezes ouvi e senti isso mesmo, o que os preocupa são os "objectivos", dão conselhos a pensar neles e raras vezes é o mesmo que atende se formos lá uns dias depois. Muitas vezes o conselho que dão é para nós irmos para casa executar a operação na net. Não sei quanto melhorou o negócio bancário, mas perdeu a alma.
Suzana
O comércio de proximidade ainda continua a ser, embora muito menos que no passado, um importante factor de socialização, em particular em alguns meios ainda não atingidos pelo peso das grandes superfícies.
No bairro onde vivo, um bairro antigo de Lisboa, o comércio de proximidade ainda vai sendo uma realidade. Prefiro fazer algumas compras e recorrer a alguns serviços nas lojas do meu bairro. Conhecem-me e eu conheço os comerciantes que fazem das suas lojas espaços de encontro que vão muito para além de uma relação meramente comercial. A companhia, a simpatia, a disponibilidade, a facilidade são tudo aspectos que são valorizados pelos comerciantes e pelos clientes. Aqui está uma parte importante da "alma do negócio".
Sendo um bairro com uma população muito envelhecida, as pessoas mais idosas encontram no comércio de proximidade um amparo para viver cada dia da sua vida, sendo que muitas vezes é na farmácia, no correio, no lugar das hortaliças ou na leitaria da esquina que encontram amparo para a sua solidão.
O comércio de proximidade é muitas vezes um factor de coesão social, um "ponto de encontro" geracional e um nó ainda bem atado de micro-redes de solidariedade.
Mas enganam-se os que pensam que em lojas de centros comerciais e em supermercados se perdeu completamente esse jeito de comércio de proximidade. No bairro onde vivo, no Olivais, até as caixas do supermercado conhecem muitos clientes habituais e conversam com eles, para além de muitos clientes se conhecerem uns aos outros. Há um certo clima de bairro. Claro que isto não acontece em todas as lojas e nos hipermercados se perdeu de todo.
É verdade, muito do comércio tradicional desapareceu ou tem tendência a desaparecer, devido às novas formas de comerciar em grandes centros, vulgo hipermercados.
Em substituição das antigas mercearias, retrosarias etc., temos agora supermercados, espaços agradáveis e organizados onde, tal como o comentador Freire Andrade diz, também se criam relações amistosas com o pessoal que ali trabalha.
É claro que os hipermercados são mais impessoais do que os seus parentes (supermercados, quase sempre situados no interior da cidade), mais que não seja porque se localizam em pontos de passagem, de e para a periferia das grandes cidades.
Pessoalmente sou a favor da existência destes espaços, onde de uma assentada encontro tudo ao meu alcance, encaro-os como uma modernidade e ao mesmo tempo uma “nova” necessidade da vida actual.
E reparo que cada vez mais os portugueses estão a aderir a estes espaços, que constantemente implementam medidas gestionárias com vista a uma maior rentabilidade do investimento, como a introdução das caixas automáticas onde o cliente é também o operador, e, para meu espanto vejo pessoas de todos os grupos etários que à primeira impressão me pareciam renitentes à utilização destas tecnologias, a preferirem estas caixas às outras com operador, o que significa que apesar de tudo somos gente aberta e com vontade de acompanhar os tempos modernos. Fossem assim todos os que nos governam!
Cara Drª Susana Toscano,
Desde há alguns meses, sou leitor assíduo do 4R e, ocasionalmente, tomo a liberdade de intervir.
A delicadeza com que resgata os mais ínfimos detalhes da nossa existência e a sensibilidade com que os realça nas suas crónicas proporcionam-me momentos únicos de introspecção.
Leio os seus textos como olho uma fotografia, aprecio uma pintura ou contemplo uma paisagem.
Fico-lhe, por isso, imensamente grato.
O bairro que descreve poderia muito bem ser aquele onde cresci.
O bairro do Sr. António da mercearia, que me oferecia um biscoito à suposta revelia da minha Mãe; Do Sr Castella, da livraria/discoteca, onde todas as semanas, ao longo de mais de dois anos, ia religiosamente buscar um novo fascículo do curso de inglês da BBC (e todos os meses, uma cassete nova); do Sr. Pestana, da oficina de bicicletas, velha glória do ciclismo regional, que eu visitava assiduamente, de joelhos esfolados...; Do Sr. Mário, da casa de ferragens, que também era árbitro de futebol; ou ainda do rezingão Sr. Ermenegildo (o Sr. "Gemildo", como dizíamos) que passava a vida a confiscar-nos bolas, sujeitando, fatalmente, o quintal do rés-do-chão em que vivia aos assaltos do bando de "terroristas" a que tive a felicidade de pertencer...
Os bairros tradicionais eram, de facto, microcosmos repletos de vida, por onde, aos 6 anos de idade, me podia "perder", em total liberdade e segurança, ao regressar a pé da escola, com as chaves de casa penduradas ao pescoço por um tosco cordel! Onde organizavamos peditórios porta-a-porta para as festas dos santos populares, distribuindo uns pequenos cartões escritos à mão dizendo: "Os putos convidam"!
Que é feito desses lugares?
Permita-me, caro Henry, que sublinhe as suas bonitas e justas palavras e dizer-lhe que, indubitavelmente, a autora (tive a honra de a conhecer pessoalmente aquando do lançamento dos dois livros 4R) as merece, pela sua veia excecional para a escrita, e ainda pela simpatia que irradia.
"A delicadeza com que resgata os mais ínfimos detalhes da nossa existência e a sensibilidade com que os realça nas suas crónicas proporcionam-me momentos únicos de introspecção.
Leio os seus textos como olho uma fotografia, aprecio uma pintura ou contemplo uma paisagem.
Fico-lhe, por isso, imensamente grato."
É isso Margarida, há um valor acrescentado que não se inclui nas contas aos "impactos" da evolução urbana ou dos prejuizos sociais.
Caro freire de Andrade, também conheço bem os Olivais e realmente, talvez por ser um bairro bastante envelhecido e com poucas lojas de rua, no centro comercial há um ambiente diferente, mas é muito mais difícil criar laços em espaços tão grandes, o que vale é que a necessidade aguça o engenho!
Caro paulo, tem toda a razão, nós somos pobres e copiamos a vida dos ricos de modo a que ficamos ainda mais pobres, não só pelas dívidas mas pelas condições de vida que criamos, como a necessidade de ter automóvel, o fim das lojas e da vida nos centros urbanos, a dispersão dos núcleos populacionais, parece que as pessoas não contam, de facto, é só a parte material, como se isso não tivesse como único fim uma vida melhor para as pessoas.
caro jotac, se as pessoas não têm alternativa, o que hão-de fazer? passear nos centros comerciais, pelo menos "enchem os olhos", como se diz, com mil coisas bonitas que não estão ao seu alcance mas que talvez lhes dê a expectativa de um dia virem a poder ter, já não digo nada.
Caro henry, muito obrigada pelo seu comentário tão amável e elogioso, espero que possa ter sempre esse gosto em vir até aqui para conversar um pouco connosco.
Enviar um comentário